Sobre a crônica
Uma leitora se refere aos textos aqui publicados como "reportagens". Um
leitor os chama de "artigos". Um estudante fala deles como "contos". Há
os que dizem: "seus comentários". Outros os chamam de "críticas". Para
alguns, é "sua coluna".
Estão errados? Tecnicamente, sim – são crônicas –, mas... Fernando
Sabino, vacilando diante do campo aberto, escreveu que "crônica é tudo
que o autor chama de crônica".
A dificuldade é que a crônica não é um formato, como o soneto, e muitos
duvidam que seja um gênero literário, como o conto, a poesia lírica ou
as meditações à maneira de Pascal. Leitores, indiferentes ao nome da
rosa, dão à crônica prestígio, permanência e força. Mas vem cá: é
literatura ou é jornalismo? Se o objetivo do autor é fazer literatura e
ele sabe fazer...
Há crônicas que são dissertações, como em Machado de Assis; outras são
poemas em prosa, como em Paulo Mendes Campos; outras são pequenos
contos, como em Nelson Rodrigues; ou casos, como os de Fernando Sabino;
outras são evocações, como em Drummond e Rubem Braga; ou memórias e
reflexões, como em tantos. A crônica tem a mobilidade de aparências e de
discursos que a poesia tem – e facilidades que a melhor poesia não se
permite.
Está em toda a imprensa brasileira, de 150 anos para cá. O professor
Antonio Candido observa: "Até se poderia dizer que sob vários aspectos é
um gênero brasileiro, pela naturalidade com que se aclimatou aqui e
pela originalidade com que aqui se desenvolveu".
Alexandre Eulálio, um sábio, explicou essa origem estrangeira: "É nosso
familiar essay, possui tradição de primeira ordem, cultivada desde o
amanhecer do periodismo nacional pelos maiores poetas e prosistas da
época". Veio, pois, de um tipo de texto comum na imprensa inglesa do
século XIX, afável, pessoal, sem cerimônia e no entanto pertinente.
Por que deu certo no Brasil? Mistérios do leitor. Talvez por ser a obra curta e o clima, quente.
A crônica é frágil e íntima, uma relação pessoal. Como se fosse escrita
para um leitor, como se só com ele o narrador pudesse se expor tanto.
Conversam sobre o momento, cúmplices: nós vimos isto, não é leitor?,
vivemos isto, não é?, sentimos isto, não é? O narrador da crônica
procura sensibilidades irmãs.
Se é tão antiga e íntima, por que muitos leitores não aprenderam a
chamá-la pelo nome? É que ela tem muitas máscaras. Recorro a Eça de
Queirós, mestre do estilo antigo. Ela "não tem a voz grossa da política,
nem a voz indolente do poeta, nem a voz doutoral do crítico; tem uma
pequena voz serena, leve e clara, com que conta aos seus amigos tudo o
que andou ouvindo, perguntando, esmiuçando".
A crônica mudou, tudo muda. Como a própria sociedade que ela observa com
olhos atentos. Não é preciso comparar grandezas, botar Rubem Braga
diante de Machado de Assis. É mais exato apreciá-la desdobrando-se no
tempo, como fez Antonio Candido em "A vida ao rés-do-chão": "Creio que a
fórmula moderna, na qual entram um fato miúdo e um toque humorístico,
com o seu quantum satis de poesia, representa o amadurecimento e o
encontro mais puro da crônica consigo mesma". Ainda ele: "Em lugar de
oferecer um cenário excelso, numa revoada de adjetivos e períodos
candentes, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma
singularidade insuspeitadas".
Elementos que não funcionam na crônica: grandiloqüência, sectarismo,
enrolação, arrogância, prolixidade. Elementos que funcionam: humor,
intimidade, lirismo, surpresa, estilo, elegância, solidariedade.
Cronista mesmo não "se acha". As crônicas de Rubem Braga foram vistas
pelo sagaz professor Davi Arrigucci como "forma complexa e única de uma
relação do Eu com o mundo". Muito bem. Mas Rubem Braga não se achava o
tal. Respondeu assim a um jornalista que lhe havia perguntado o que é
crônica:
– Se não é aguda, é crônica.
http://vejasp.abril.com.br/materia/sobre-cronica
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