Crônica
Meu amigo Marcos
O generoso e divertido companheiro de crônicas
Conheci Marcos Rey há mais de vinte anos, quando sonhava tornar-me
escritor. Certa vez confessei esse desejo à atriz Célia Helena, que
deixou sua marca no teatro paulista. Tempos depois, ela me convidou para
tentar adaptar um livro para teatro. Era O Rapto do Garoto de Ouro, de
Marcos. Passei noites me torturando sobre as teclas. Célia marcou um
encontro entre mim e ele, pois a montagem dependia da aprovação do
autor. Quando adolescente, eu ficara fascinado com Memórias de um
Gigolô, seu livro mais conhecido. Nunca tinha visto um escritor de
perto. Imaginava uma figura pomposa, em cima de um pedestal. Meu coração
quase saiu pela boca quando apertei a campainha. Fui recebido por
Palma, sua mulher. Um homem gordinho e simpático entrou na sala. Na
época, já sofria de uma doença que lhe dificultava o movimento das mãos e
dos pés. Cumprimentou-me. Sorriu. Estava tão nervoso que nem consegui
dizer “boa-tarde”. Gaguejei. Mas ele me tratou com o respeito que se
dedica a um colega. Propôs mudanças no texto. Orientou-me.
Principalmente, acreditou em mim. A peça permaneceu em cartaz dois anos.
Muito do que sou hoje devo ao carinho com que me recebeu naquele dia.
Continuei a vê-lo esporadicamente. Era alegre, divertido. Todo
sábado, de manhã, ia tomar cerveja e uísque com outros escritores na
Livraria Cultura, no Conjunto Nacional. Às vezes nos telefonávamos para
falar da vida. Escritores costumam ser competitivos e ciumentos. Buscam
defeitos nas obras alheias, como mulheres vaidosas, comparando vestidos
umas das outras. Marcos, não. Conheci muitos autores beneficiados por
suas opiniões. Era generoso. Quando deu uma entrevista no programa de Jô
Soares, a escritora Fanny Abramovich lhe telefonou. Elogiou seu suéter,
de uma bonita cor cinza. Marcos mandou-o de presente para ela.
Sempre me senti orgulhoso por ser seu companheiro aqui na última
página de Veja São Paulo. Quando começamos as crônicas, fui visitá-lo.
Ele acabara de comprar um apartamento em Perdizes. Seus livros ficarão
na história da literatura. Mas, até poucos anos atrás, lutava com o
aluguel. Não costumávamos nos telefonar em aniversários ou datas
especiais. Mas, em janeiro último, ligou para desejar feliz Ano-Novo.
Chamou-me de colega. Emocionei-me:
— Tomara que você também tenha um ano maravilhoso.
Como é a vida, não?
Palma me contou que tudo aconteceu muito depressa. Hospitalização, operação. Os médicos foram francos. Ela o visitou na UTI.
— Marcos, não fique sofrendo. Pode partir em paz, meu amor.
Estava adormecido, mas ela tem uma certeza íntima de que ele entendeu.
Depois de 39 anos juntos, Palma tem o direito de ter certezas. Quando
alguém nos deixa, até as pessoas mais céticas sentem o desejo de
acreditar no desconhecido.
Pessoalmente, nunca tive dúvida de que existe algo mais, em algum lugar. Ainda bem.
Marcos, algum dia a gente se encontra por aí.
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