Crônica
Amigo parnasiano
- (Foto: Veja São Paulo)
Acho que nunca falei do meu amigo parnasiano. Era poeta e jovem, hoje
é mais poeta do que jovem. Fazia umas brincadeiras com a linguagem dos
poetas parnasianos, transplantando-a para banalidades de hoje. Os
parnasianos gostavam de palavras pomposas, rebuscadas nos baús da
língua, para eles joias preciosas. Nosso Hino Nacional é parnasiano.
Lembram-se do “lábaro que ostentas estrelado”? É a bandeira cheia de
estrelas que exibimos.
Os parnasianos gostavam de empregar rútilo no lugar de brilhante,
tálamo no lugar de cama ou leito conjugal, mansarda no lugar de sótão ou
de casa miserável, gilvaz no lugar de cicatriz, masmorra ou cárcere no
lugar de prisão, serôdio no lugar de temporão ou fora de época e por aí
vai. Não sei dizer quando esse amigo começou com a brincadeira. Talvez
na faculdade de direito, e além do talvez não avanço. Uma noite,
farreado, acabado e sem pouso, ele chegou a um daqueles hotéis de má
fama que havia na Avenida Ipiranga, de escadaria longa, íngreme,
estreita e desanimadora, e chamou lá de baixo:
— Estalajadeiro! Estalajadeiro!
Era já o parnasiano divertindo-se dentro dele. Um homem surgiu lá em
cima, com má vontade. E o poeta, já possuído pela molecagem parnasiana,
exclamou, teatral:
— Bom estalajadeiro! Tendes um catre para o meu repouso?
Recebeu de troco palavrões bocagianos. Certa manhã, ainda sem dormir
depois da noite boêmia, encostou-se num balcão que hesitava entre ser de
botequim ou de lanchonete para pedir um café com leite, e não resistiu
ao se dirigir à nordestina figura do outro lado:
— Do alvo leite e da negra rubiácea dai-me a secular mistura.
O rapaz pensou, não quis passar por bobo, e botou diante dele um copo
de leite de onça com cinzano. Quem mandou brincar? Na feira, após uma
madrugada, ao procurar frutas para refrescar a garganta, estranhou os
pêssegos fora de época:
— São serôdios estes pomos?
— Não, são nacionais — respondeu o feirante.
Acordou na manhã de sol com a cantoria da faxineira a limpar as vidraças:
— Que júbilo é este em pleno arrebol? Piedade, ancila!
Para a moça que encontrou na noite: — Venha para o tálamo.
Ela entendeu o que parecia ser.
Depois de alguns mal-entendidos, ele foi parando com a brincadeira. O
ponto final foi numa lanchonete, ao ser atendido por uma garçonete
jovem e bonita. Reparou no rosto dela a cicatriz de um corte recente,
nada prejudicial à beleza do conjunto. Pretendendo ser gentil, veio com
aquela prosopopeia:
— A moçoila sente pruridos no gilvaz?
Ela trancou os lábios e foi-se queixar da indecência para o noivo
copeiro, que veio de lá e meteu o braço no poeta, sem palavras. Como
diriam os parnasianos, aplicou-lhe um escarmento.
e-mail: ivan@abril.com.br
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