terça-feira, 30 de abril de 2013

Discurso: carta renúncia de JÂNIO QUADROS

Leia a íntegra da carta de renúncia:

"Fui vencido pela reação e assim deixo o governo. Nestes sete meses cumpri o meu dever. Tenho-o cumprido dia e noite, trabalhando infatigavelmente, sem prevenções, nem rancores. Mas baldaram-se os meus esforços para conduzir esta nação, que pelo caminho de sua verdadeira libertação política e econômica, a única que possibilitaria o progresso efetivo e a justiça social, a que tem direito o seu generoso povo.

Desejei um Brasil para os brasileiros, afrontando, nesse sonho, a corrupção, a mentira e a covardia que subordinam os interesses gerais aos apetites e às ambições de grupos ou de indivíduos, inclusive do exterior. Sinto-me, porém, esmagado. Forças terríveis levantam-se contra mim e me intrigam ou infamam, até com a desculpa de colaboração.

Se permanecesse, não manteria a confiança e a tranqüilidade, ora quebradas, indispensáveis ao exercício da minha autoridade. Creio mesmo que não manteria a própria paz pública.

Encerro, assim, com o pensamento voltado para a nossa gente, para os estudantes, para os operários, para a grande família do Brasil, esta página da minha vida e da vida nacional. A mim não falta a coragem da renúncia.

Saio com um agradecimento e um apelo. O agradecimento é aos companheiros que comigo lutaram e me sustentaram dentro e fora do governo e, de forma especial, às Forças Armadas, cuja conduta exemplar, em todos os instantes, proclamo nesta oportunidade. O apelo é no sentido da ordem, do congraçamento, do respeito e da estima de cada um dos meus patrícios, para todos e de todos para cada um.

Somente assim seremos dignos deste país e do mundo. Somente assim seremos dignos de nossa herança e da nossa predestinação cristã. Retorno agora ao meu trabalho de advogado e professor. Trabalharemos todos. Há muitas formas de servir nossa pátria.

Brasília, 25 de agosto de 1961. Jânio Quadros"

O discurso da carta-testamento Getúlio Vargas

Cópia da Carta-testamento de Getúlio Vargas, 24 de agosto de 1954:
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Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.
Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre.
Não querem que o povo seja independente. Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder.
Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida.
Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão.
E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.
 

Pontuação- texto cômico

E PONTO FINAL

"Não vou fazer nenhuma pergunta complicada, com ponto de interrogação. Com você, quero ir direto ao ponto"
Franco, por e-mail.

GENERALÍSSIMO,
Eu também.

Barbara Gancia. Revista da Folha. Edição 10 de novembro de 2002.
 

PONTUAÇÃO- poesia

PONTUAÇÃO

Na interrogação me enrosco
num caracol sem saída?
Na vírgula me sento um pouco
e descanso, pensativa.
Na exclamação dou um pulo
fico na ponta dos pés!
No ponto-e-vírgula escorrego
e quase paro; mas ando.
Marco passo nos dois pontos: e nesta pausa me explico.
No travessão me espreguiço
_ deitado presto serviço.
Na reticência me espalho
vou muito além do que falo...
Mas é do ponto que gosto,
Termino nele e me encosto.

(Beatriz, Elza. A menina dos olhos, Belo Horizonte, Miguilim, 1083, p.17)
in: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Educinf/mod_iii_vol1unid2.pdf


 

Pontuação. Livro ORA, VÍRGULAS

Ora, Vírgulas!

Autora : Rosana Rios
Ilustradora : Ellen Pestili
                 
Rosana Rios, sempre brilhante, traz uma aventura surpreendente. Experimentar o mundo das palavras sem a ajuda das vírgulas. Será que realmente esse sinal de pontuação é capaz de trazer tanta confusão? O menino sabido como ele só tinha uma cachorrinha com três filhotes e o pai do menino era uma gata amarela esperando cria também do menino era todo bicho que aparecesse no quintal com cara de fome. Enquanto os adultos, teimosos, discutiam, discutiam; enquanto o Governo criava comissões para investigar o mistério, os mais jovens observavam o estranho comportamento dos pássaros. E, depois, com a ajuda de um adulto especial, puseram em prática um plano para resolver o problema do sumiço das vírgulas e todas as drásticas consequências desse fato. Com sensibilidade, a autora Rosana Rios, partindo da importância do uso das vírgulas para a organização e a elaboração do texto escrito, chega a um problema que diz respeito a toda a humanidade – a questão ambiental, ecológica.

Vocabulário

MESTRE AURÉLIO ENTRE AS PALAVRAS

Ora, resolvi enriquecer o meu vocabulário e adquiri o livro Enriqueça o seu Vocabulário que o sábio Professor Aurélio Buarque de Holanda Ferreira fez, reunindo o material usado em sua página de Seleções.
Afinal de contas nós, da imprensa, vivemos de palavras; elas são nossa matéria-prima e nossa ferramenta; pode até acontecer (pensei eu) que, usando muitas palavras novas e bonitas em minhas crônicas, elas sejam mais bem pagas.
Confesso que não li o livro em ordem alfabética; fui catando aqui e ali o que achava mais bonito, e tomando nota. Aprendi, por exemplo, que a calhandra grinfa ou trissa, o pato gracita, o cisne arensa, o camelo blatera, a raposa regouga, a pavão pupila, a rola turturina e a cegonha glotera.
Tive algumas desilusões, confesso; sempre pensei que trintanário fosse um sujeito muito importante, talvez da corte papal, e mestre Aurélio afirma que é apenas o criado que vai ao lado do cocheiro na boléia do carro, e que abre a portinhola, faz recados, etc. Enfim, o que nos tempos modernos, em Pernambuco, se chama "calunga de caminhão. E sicofanta, que eu julgava um alto sacerdote é apenas um velhaco. Cuidado, portanto, com os trintanários sincofantas!
Aprendi, ainda que Anchieta era um mistagogo e não um arúspice, que os pêlos de dentro do nariz são vibrisas, e que diuturno não é o contrário do noturno nem o mesmo que diário ou diurno, é o que dura ou vive muito.
Latíbulo, gigajoga, julavento, drogomano, algeroz... tudo são palavras excelentes que alguns de meus leitores, talvez não conheçam, e cujo sentido eu poderia lhes explicar, agora que li o livro; mas vejo que assim acabo roubando a freguesia de mestre Aurélio, que poderia revidar com zagalotes, ablegando-me de sua estima e bolçando-me contumélias pela minha alicantina de insipiente.
Até outro dia, minhas flores.
Fevereiro, 1966

segunda-feira, 8 de abril de 2013

... Palavras em fuga

Palavras em fuga
Ivan Angelo
Quantas vezes isso acontece? Você procura uma palavra e ela se esconde. Revira almofadas na mente, descerra portas, abre gavetas nos compartimentos do passado, bate nos bolsos da memória, levanta tapetes, ela estava bem à vista, ali, ou ali, e não mais a encontra. Palavras brincalhonas, molecas, brincando de esconde-esconde. Palavras que o evitam, mal-agradecidas, esquecidas do tempo em que delas você fez bom uso, trabalhando o que elas têm de mais caro: a precisão e a imprecisão.
Você percebe, no exato momento, que uma palavra está fugindo. No meio de um assunto, quase chegando a ela, ainda atento a duas ou três palavras que deveriam vir antes dela, a vê retirar-se, vislumbra sua fuga, persegue-a, quase a agarra pelos cabelos, ela escapa, você não consegue mais pegá-la, perdeu-a.
Pode acontecer ao contar uma piada: de repente você não consegue se lembrar de um detalhe sobre o qual se apóia toda a estrutura da piada e ela vira um desastre que o amargura; ou acontece ao contar um caso sobre uma pessoa cujo nome é essencial e ele não vem; ou ao recomendar um livro, e o título se apaga de repente junto com – oh, céus! – o nome do autor; ou ao encontrar aquele amigo de cerimônia que você sabe perfeitamente quem é, mas o nome, o nome, o nome – oh, céus!
Muitas vezes, quando a roda é amiga e acontece uma falha dessas, você estala os dedos, espera que eles funcionem como a faísca que dá a partida a um motor; ou como um estimulante: você os estala açulando os neurônios, mas neurônios não são cachorrinhos nem saltam, ativos, agitando o rabinho. Você recorre aos amigos da roda, a alguém que talvez estivesse a par daquilo de que você quer se lembrar, e começa um jogo de palavra puxa palavra, como é que se chama aquele camarada?, aquele!, e segue atirando dicas que poderiam levar o amigo a localizar o dado fugidio, mas o cérebro do amigo caminha para um lado e o seu corre para outro, não, não, não é isso, e você fornece outro dado que também não funciona, ou só funcionaria no repertório do seu próprio cérebro, que está em pane momentânea.
Outros assuntos vão entrando na conversa; a palavra desaparecida deixa de atrair a solidariedade dos amigos; algo menos trabalhoso, ou mais divertido, ou mais emocionante, ou mais urgente os conquista, e eles vão indo, e você é deixado só com seu mistério, Sherlock sem Watson.
Você pensa no seu cérebro como um computador com vírus tipo cavalo de Tróia, que espalhou inimigos por todos os caminhos: trava, não troca a tela, não abre arquivos, a busca não funciona, você clica, clica, e nada acontece.
Chega um momento em que as pessoas se dispersam e vão para seus mundos, desfaz-se aquele grupo que reconheceria pessoas e fatos e casos comuns, e ao se dispersar deixa você com aquela falha de memória, sozinho, aquela palavra escondida atrás de um muro, desafiando você, ou brincando com você, e você não consegue se libertar daquela necessidade de lembrar, e o seu dia vira um labirinto por onde você caminha procurando a palavra.
As pessoas, outras pessoas, conversam com você, parece que está tudo bem, mas você se distrai na perseguição obsessiva, porque lhe pareceu, no meio da conversa, que a tal palavra estava ali se avizinhando, ou mesmo passou, reluzente e irrecuperável, estrela cadente.
Você custa a dormir, acorda de madrugada, sente aquela faísca e lá está ela, a palavra, inteira, quieta e agora inútil.

A escolha de nomes para os filhos: modismos...

Próprios e impróprios
Ivan Angelo
Mas por que será que tantas pessoas recusam os nomes próprios tradicionais na hora de registrar os filhos? Estão nesse rol duas categorias de pessoas: as ingênuas e as bregas. Buscam – e acham! – nomes complicados, muitas vezes estranhos; inventam, misturam, importam, adaptam. Por que não um simples João, Paulo, Pedro, Tiago, Mariana, Luísa, Camila, Luciana? Talvez acreditem que um nome comum conduzirá o nomeado a um destino comum.
Na busca do diferente, têm preferência sons da América do Norte. Wesley está na moda. Brian, Nathan, Michael, Washington correm junto. Muitas vezes os pais só pegam o som, não a grafia. Como é o caso do nome do jogador de futebol Uóshito. Ou de seus semelhantes, que encontrei numa matéria de jornal recente: Uini (seria Winny), Oliude (Hollywood), Estivenson (Stevenson), Viliam (William), Hantuane (difícil reconhecer aqui o francês Antoine). Outros inventam uma pronúncia que não existe, como o brega-chique Paôla. Porque Paola, em italiano, se pronuncia Paula, simplesmente. Meu próprio nome é estrangeiro, russo, mas não dá muito na vista. Encontro na reportagem nomes que não são de gente e passaram a ser: Welcome, Pensylvania, Overland. Pode uma coisa dessas?
Há pais que recorrem a misturas: Wandressa, Lusimélia, Roniwalter, Roseméri. Outros simplesmente inventam: Ervane, Reulis. Quantos nomes de gente conhecida são também estranhos? O político Pauderney, a desportista Shelda, o escritor Lêdo.
Um amigo descendente de libanês contou-me que tinha uma tia com um nome incrível: Uruqsan. Registrado. Não havia nada parecido no Líbano, de onde viera menina. Lá ela se chamava Roxane. O avô contava que repetira várias vezes o nome dela para o funcionário da imigração e este o anotara no documento. Não entendia a grafia brasileira. Imagine, leitor, o sotaque carregado do libanês ao silabar Roxane, o "r" palatal apoiando-se numa ausente vogal "u", o "x" soando "cs" como em "fixa" ou "flexão", e você estará perto de Uruqsan.
Sim, às vezes a culpa é do cartório. Aconteceu com Millôr, que era para ser Milton mas a letra ruim do escrivão empurrou o pequeno traço do "t" para cima do "o", não desenhou direito a perninha do "n", e o Milton desapareceu. Meu próprio irmão era para se chamar Jesus, como meu pai, mas um escrivão latinista ou católico demais transformou-o em Jésus. Pode ter achado falta de respeito alguém se chamar Jesus. Ora, é um nome popular no México, país de católicos fervorosos.
Quando eu era menino, falava-se de um nome absurdo, Um Dois Três de Oliveira Quatro. Dizia-se que era real, tinha saído no jornal. Saiu também José Índio do Brasil, parece que nome verdadeiro. No fim do cadastramento eleitoral os jornais costumavam vasculhar listas nos cartórios, à procura de curiosidades.
Que não faltam. Não é curioso que tantos jogadores de futebol com nomes terminados em "son" tenham ficado famosos? A começar por Édson, o maior de todos. Confiram: Edmilson, Denilson, Dinelson, Robson, Anderson, Edílson, Liédson, Kléberson...
Curioso também como alguns nomes tradicionais caíram em desuso, considerados "antigos", "feios", "de pobre", "nada a ver": Sebastião, Eustáquio, Joaquim, Benedito, Eurico, Ifigênia, Dirce, Orlando, Vanda, Ildeu, Amélia, Vicente, Lourdes, Raimunda, Aurora, Arlindo. E outros, "modernos", entraram em alta, como Jéssica, Andressa, Pâmela, Gisele, Natalie, Michel, Michelle. Não se explica. Modas...
Pensava que era um castigo carregar um nome esquisito a vida inteira. Gozação na escola, apelidos para amenizar, burocracia dificultando a mudança. Nada disso. O jornal diz que a maioria adora a diferença.
fonte: revista Veja São Paulo, 2005.

Livros no purgatório


Livros no purgatório
Ivan Angelo
Nos meus tempos de criança, o purgatório significava a segunda chance. É mais ou menos assim que vejo os livros dos sebos e dos buquinistas. De onde vem essa palavra? Alguém, há mais de meio século, soprou o verbo buquinar nos ouvidos de um poeta e ele fez o Soneto da Buquinagem. As palavras vêm do francês popular, importadas pelos garimpeiros de livros usados: "Buquinemos, amiga, neste sebo", convida Carlos Drummond de Andrade no soneto.
Proliferam as casas de livros usados na cidade. Reparem. Há buquinistas em mais de um ponto da Avenida Paulista, na Praça da República, ao lado da Biblioteca Municipal, nas imediações e até nos corredores de todas as universidades, na frente dos cinemas de arte, nas feiras de bricabraque, na passagem subterrânea da Rua da Consolação acabam de instalar uma galeria inteira de livros usados, sebos multiplicaram-se no começo da Avenida Pedroso de Morais, pipocam em ruas de bairros, em Perdizes, no Sumaré, na Vila Madalena, na Pompéia, em Pinheiros, na Rua Augusta, Avenida São João, Rua das Palmeiras, sem falar daqueles gigantescos do centro.
No mercado de usados, livros são diferentes de carros, roupas, móveis ou eletrodomésticos. Ninguém se desfaz de livros porque não estão funcionando bem ou porque saiu um modelo de linhas mais modernas. Estão lá por desamor, ou por ser parte indesejada de um espólio, ou já por falta de serventia, decepção, economia de espaço. De certa forma, foram eles que se livraram de quem não os queria.
Nas estantes empoeiradas, vivem a dualidade: desprezados e procurados. Alguém achou melhor abandoná-los por uns trocados, outro alguém irá encontrá-los por acaso ou busca. E o preço? Livros novos têm o preço dos negócios, dos royalties, do papel, das tecnologias de impressão, do marketing, da distribuição, dos juros. Os livros velhos deixam para trás tudo isso, ficam só com seu conteúdo e raridade, em franciscana simplicidade.
O estarem ali nada tem a ver com o não serem bons. Autores clássicos como Cervantes andam por lá, e no Dom Quixote pode-se ler: "Não há livro tão mau que não tenha algo de bom". A mesma opinião, quase com as mesmas palavras, tem outro clássico presente nos sebos, Plínio, o Velho, do século I: "Nenhum livro é tão ruim que não tenha alguma utilidade". Os sebos e as bibliotecas não deixam que eles se percam. Para alguém hão de servir.
E não estão lá porque não tiveram boa venda no seu tempo. Nada disso. Convivem os best-sellers, já sem arrogância, com os modestos. A cultura tem lucrado mais com os livros que deram prejuízo aos editores (gostaria que a frase anterior fosse minha. Não é. Tê-la citado sem aspas foi um truque para mostrar como valem até hoje as palavras do bem-humorado pregador inglês Thomas Fuller, morto em 1661).
Corria a primeira metade do século XIX quando Honoré de Balzac disse: "É extremamente raro que um livro seja comprado pelo valor que tem, quase sempre ele é publicado por razões alheias a seu mérito". No sebo, essas contas se acertam. Um século antes, o inglês Samuel Johnson argumentava que a maneira de difundir uma obra era vendê-la a preço baixo. Quem sabe a proliferação dos sebos nesta época de dinheiro difícil está ligada à pechincha, já que no fundo é disso que se trata? Em livrarias não se pechincha.
Uma coisa é certa: que seria das casas de livros velhos se não fossem as casas de livros novos, de onde eles sairão para cumprir seu destino de amor e desamor, encontros e desencontros?
Fonte: REVISTA VEJA SP , 2005

Uma crônica sobre o poema



E o cronista endoidou...
 
FERREIRA GULLAR
 
Vou falar hoje de um assunto que talvez não seja assunto de crônica, mas, como já disse que ninguém sabe o que é crônica, vou falar assim mesmo. O assunto é o poema, uma tese sobre o poema, coisa que possivelmente não interessa a ninguém e, quem sabe, por isso mesmo eu deva falar dele.
Costumo dizer que o poema não vale nada. Não vale nada no mercado. Pouca gente compraria um poema e, se comprasse, seria barato, ou seja, ao preço do mercado. Não obstante, nem tudo é o mercado. Há mais espaços na vida do que sonha a nossa vã filosofia.
Por exemplo, quando estava eu no exílio, conheci um sujeito, economista, casado com uma linda morena brasileira. Ele e ela freqüentavam regularmente aquelas reuniões um tanto fossentas de exilados. Reuniões que não eram tão alegres quanto os papos no Jangadeiros ou no Vermelhinho, mas era o que tínhamos e, em certas situações, é melhor alguma coisa do que nada. Há divergências, é claro.
Pois bem, nessas reuniões o marido da brasileira bonita, que era talvez chileno ou espanhol, costumava sentar-se ao meu lado e puxar conversa sobre economia. Citava números, estatísticas, percentagens, leis do mercado e eu, sem muita alternativa, escutava. Até chegar o momento azado em que pedia licença a pretexto de ir ao banheiro ou apanhar uma bebida e não voltava mais. E eis que, inesperadamente, me contam que a tal morena brasileira deixara o economista por um argentino. Pensei logo comigo: na próxima reunião, se ele aparecer por lá, vai ser pior ainda, aí é que grudará comigo o tempo todo.
E chegou esse dia. Fui para a reunião disposto a escapar do sujeito a qualquer preço e consegui por algum tempo. Quando já estava no terceiro copo de cerveja, distraí-me e ele se sentou a meu lado. E sabem o que aconteceu? Não falou um só palavra de economia -só falou de poesia, assunto que dominava muito bem. Falou-me de seus poetas preferidos, que eram alguns de língua espanhola, outros franceses, ingleses ou italianos. Sabia de cor poemas de Eliot e de Fernando Pessoa.
- Estou relendo meus poemas queridos, confessou.
E então entendi: é que a morena tinha ido embora e, quando a morena vai embora, meu caro, só a poesia nos socorre. É então que ela se torna necessária.
Se tudo corre bem, a economia basta, mas, se a morena se vai, não há economia, nem trigonometria, nem geografia, ecologia, paleontologia que dê jeito. Só mesmo a poesia.
Com isso fica demonstrado por que a poesia vale pouco no mercado: trata-se de um bem de consumo conspícuo. Mas, como os poetas não escrevem para ganhar dinheiro, essa pouca valia não os desencoraja.
Esse é um aspecto deste assunto que não interessa a ninguém; o outro aspecto é que, além de valer tão pouco, o poema não é inevitável. Explicando melhor: qualquer poema que tenha sido escrito -ainda que seja "A Divina Comédia"- poderia não ter sido escrito e, além disso, poderia ter sido escrito de outro modo, poderia ser outro!
Vou dar um exemplo doméstico. Certa vez, escrevi um poema inspirado na lembrança de minha casa de infância em São Luís do Maranhão; uma casa antiga, soalho de tábuas corridas e corroídas, com algumas fendas por onde costumavam sumir minhas poucas moedas. Mas uma manhã caiu-me da mão uma moeda de um cruzado (aquele velho cruzado, aliás velhíssimo cruzado) e desapareceu por uma das fendas do soalho. Decidi recuperá-la: aproveitando o fato de que uma das tábuas do cômodo estava solta, meti-me por baixo do soalho e fui me arrastando no pó negro ali depositado, que talvez por quase um século não visse a luz do sol e exalava insuportável fedor de mofo. Recuperei a moeda, mas nunca mais esqueci aquela aventura. O poema não contava essa história, mas falava da "noite menor sob os pés da família" e da "língua de fogo azul debaixo da casa".
Isso foi em 1970. Meses depois, tive que ir para a clandestinidade e, um ano depois, para o exílio. Fui parar em Moscou. E lá, de repente, ao lembrar-me do poema, verifiquei que o perdera. Inconformado, resolvi escrevê-lo de novo e o consegui, tanto que ele foi publicado no meu livro "Dentro da Noite Veloz", editado em 1975, quando eu já estava em Buenos Aires.
Muito bem. Volto para o Brasil em 1977 e, remexendo velhas pastas que aqui haviam ficado, encontro o poema dado por perdido. Para minha surpresa, era bastante diferente do segundo, escrito em Moscou. O que significa isso? Significa, sem dúvida, que os poemas não têm uma forma inevitável e, como forma e conteúdo são indissociáveis, tampouco seu conteúdo é inevitável. Se, naquele dia em Moscou, eu tivesse encontrado o primeiro poema, não teria escrito o segundo, e aquele ficaria como o único poema possível sobre o tema, conclusão equivocada, conforme acabo de demonstrar, pois, como sugeriu Mallarmé, o poema é um lance de dados que jamais eliminará o acaso.
E digo mais: o poema não é a expressão do que se viveu ou experimentou. Se eu sinto um cheiro de jasmim na noite e escrevo um poema sobre esse fato, o que faço não é expressar tal experiência, mas, na verdade, usá-la como impulso para inventar uma coisa que não existia antes: o poema, o qual se somará a todas as galáxias, planetas, cometas, oceanos e tudo o mais que exista no universo. E o universo será, a partir de então, tudo o que já era mais aquele pequeno agregado de palavras, nascido de um perfume.
fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1906200521.htm

 

JORNALISMO E LITERATURAINTERSECÇÕES

 
Jornalismo e literatura
 
CARLOS HEITOR CONY
É necessário apelar para Aristóteles: a definição se faz pelo gênero próximo e pela diferença última. Exemplo: o homem é um animal racional. O gênero próximo é o animal; a diferença última é o racional. Aplicando a mesma definição ao jornalismo e à literatura, teríamos de encontrar a diferença última entre as duas expressões da comunicação humana.
O gênero próximo é o mesmo: o universo das letras. A diferença última é o tempo. Daí que a palavra crônica é segmento comum da literatura e do jornalismo. O jornalismo condiciona o espaço da letra ao tempo do tempo. O jornalismo distingue-se da literatura por ser uma expressão datada.
Não se trata de considerar o jornalismo como expressão inferior à literatura. São expressões diferentes, unidas pelo mesmo gênero. Utilizam o mesmo veículo, pretendem atingir o mesmo objetivo, mas em tempo próprio para cada um. Dois exemplos da diversidade de tempo que marca tanto o jornalismo como a literatura: o primeiro seria o de Castro Alves, essencialmente um poeta, e José do Patrocínio, essencialmente um jornalista. Ambos integram a cultura brasileira, ligados sobretudo à causa da abolição da escravatura. Patrocínio era o tigre, enchia a rua do Ouvidor, foi levado em triunfo, no ombro do povo, logo após a princesa Isabel ter assinado a Lei Áurea. O herói foi ele, não a princesa.
Castro Alves nunca teve triunfo igual, mas continua presente em nosso presente e estará presente em nosso futuro. "O Navio Negreiro" atravessa gerações, é declamado nas escolas, nos teatros, na TV, emplacou na história. Patrocínio jornalista não foi menor, foi até maior do que Castro Alves no factual, no tempo, na data. Mas no tempo? Na permanência? O gênero próximo que unia os dois eram as palavras que despertavam emoções e apelos à razão, mas a diferença última foi o tempo -um escreveu para o dia; o outro, para sempre.
O outro exemplo vem de fora, foi provocado pelo caso Dreyfus. Na França, havia a consciência de que um inocente apodrecia numa caverna da ilha do Diabo. O verdadeiro culpado já confessara o crime de espionagem, mas estava a salvo na Inglaterra. O poder da época não permitia a revisão do processo, o Exército francês ficaria desmoralizado e era necessário prestigiá-lo, pois havia sempre o perigo de uma guerra contra a Alemanha.
Foi nesse quadro de infâmia que um escritor se levantou em defesa da dignidade, a própria e a da nação. Emile Zola era desprezado por sua obra naturalista, acusado de imoral. Sangue italiano, arrebatado, Zola escreveu um artigo, teve dificuldade em publicá-lo. Após tentativas frustradas, procurou o "L'Aurore", dirigido então por George Clemenceau, que mais tarde seria primeiro-ministro da França. Clemenceau aceitou o artigo de Zola, mas chamou-o à Redação e comunicou-lhe que mudaria o título de seu texto. Zola quis saber o que havia de errado naquela "Carta a M.Felix Faure, Presidente da República".
Clemenceau explicou:
- Ninguém lerá um texto comprido como o seu e com esse título. Você mesmo faz uma série de acusações; no trecho final, todos os seus parágrafos começam com um "Eu acuso". O título está aí. Eu acuso! "J'accuse!".
Entraram os três para a história, Zola, Clemenceau e o artigo.
Analisemos o episódio. O escritor já era famoso, bem mais do que Clemenceau, que, na época, era apenas um jornalista voltado para a política. As obras de Zola corriam o mundo, ele fizera discípulos em todas as literaturas (Eça de Queiroz foi um deles), tornara-se o papa de uma nova corrente literária, mas não sabia provocar impacto. Foi, como disse Victor Hugo no seu funeral, "um momento da consciência humana", mas lhe faltava o "timing" que se adquire nas redações comprometidas com o que está acontecendo.
Zola não escrevia para o dia seguinte, escrevia para sempre. Tanto que seus romances continuam editados, traduzidos, adaptados para o teatro, para o cinema, para a TV.
Costumo fazer uma comparação entre jornalismo e literatura. O jornalista é um peixe de aquário, exibe seu desenho, suas cores, a fosforescência que atrai o leitor. Impossível não admirar um peixe na gaiola iluminada, com água renovada diariamente. É um clown. Precisa de brilho, expressa-se num palco.
O escritor é diferente. Ele terá apenas cem leitores, como Stendhal calculava para si mesmo. Ou, como Shakespeare, passará 200 anos no limbo. O jornalista não pode passar duas edições sem ser lido.
E, se o jornalista é o peixinho de aquário, o escritor é o peixe da água profunda, vive na treva, em águas aonde nem chega a luz do sol. É monstruoso, escuro, quasímodo que habita um território impenetrável. Não conhece os limites do palco. Tem o oceano para arrastar seu corpo medonho, sua fome que não escolhe o que comer. (PS: este é o resumo de uma palestra em seminário sobre jornalismo e literatura.)
FONTE:https://www.blogger.com/blogger.g?blogID=1399839174109335282#editor/target=post;postID=5889891217785283833

CULPA DA VÍRGULA?

13/04/07 - 11h07 - Atualizado em 26/07/07 - 13h14

Kassab libera grito em feiras e culpa 'vírgula' por polêmica

Prefeito alega que nunca foi contra a gritaria nas feiras de São Paulo.
Apesar disso, supervisor da prefeitura já havia até explicado como seria fiscalização.
continua:
http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL21466-5605,00-KASSAB+LIBERA+GRITO+EM+FEIRAS+E+CULPA+VIRGULA+POR+POLEMICA.html

quarta-feira, 3 de abril de 2013

INTERTEXTUALIDADE e apropriação

"Todo tipo de apropriação é possível"
RENATO ROSCHEL
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O escritor argentino Jorge Luis Borges, fascinado pelo "Livro das Mil e Uma Noites", chegava a dizer que, quanto mais edições falsas do livro fossem escritas, mais ele se tornaria interessante.
Na entrevista a seguir, Mamede Mustafa Jarouche, professor de letras na USP, fala sobre a tradição de "traições" a que o livro foi submetido e sobre sua nova tradução da obra, a primeira no país a ser feita, na íntegra, diretamente dos manuscritos árabes.
 
Folha - Aristóteles difere o verdadeiro do verossímil com a frase: "O historiador diz o que aconteceu; o poeta, o que poderia ter acontecido". O "Livro das Mil e Uma Noites" é um livro de poeta ou de historiador?
Mamede Jarouche -
Dos dois. Shahrazád é poeta no duplo sentido: de retomar tanto o discurso do poeta e retrabalhá-lo como no sentido de pegar o discurso do historiador, daquilo que aconteceu, e transformar naquilo que poderia ter acontecido, reformulando o discurso histórico.
Folha - Existe um estereótipo sobre as "Mil e Uma Noites" que chega a caracterizá-lo como literatura infantil.
Jarouche -
Eu diria que caracterizar o livro como literatura infantil é uma das piores e mais ridículas formas de infantilidade intelectual que você pode encontrar. Na verdade, a literatura infantil é uma invenção muito recente. Ela não existe no século 13, que é o período que a gente pode pensar como de elaboração do livro. Na verdade, creio que, operando silenciosamente por trás dessa categorização, há uma espécie de elogio.
Folha - E qual seria?
Jarouche -
À qualidade narrativa do texto. O livro possui uma qualidade narrativa tal que ele se presta a todo tipo de apropriação, e é por isso que é tão rico.
Folha - O que você teria a dizer sobre a tradução de Antoine Galland, que é considerada a mais famosa?
Jarouche -
Sim, e é a mais antiga também. É a primeira tradução do livro para uma língua ocidental. Ela tem o seu mérito porque foi um trabalho que popularizou o livro. Talvez estejamos falando hoje do livro por causa do trabalho pioneiro do Galland. Ele pode ser considerado um clássico da literatura francesa.
Temos que levar em conta que Galland traduziu esse texto no começo do século 18. Não havia dicionários, não havia trabalhos de filologia a respeito, não havia quase nada.
Do ponto de vista técnico, o que o Galland fez já não pode ser considerado uma tradução. Seja porque não entendeu muitas partes do livro, seja porque não dispunha de muitas partes do livro, isto é, o único manuscrito que tinha estava truncado em algumas passagens. Já antes do manuscrito terminar, ele, por exemplo, traduzia algumas partes e daí se cansava. Então passava a traduzir de um outro lugar (outro texto) ou então inventava outra história.
Folha - Essas mirabolantes histórias dos caminhos percorridos pelas traduções chamavam muito a atenção de Borges, a ponto de ele também praticar esse tipo de invenção. Você acha que podemos falar que talvez o fantástico que aparece na literatura latino-americana tenha algum parentesco com as "Mil e Uma Noites"?
Jarouche -
É possível, sem dúvida nenhuma que é possível. Claro que há outras vertentes, mas acredito que as "Mil e Uma Noites" têm uma importância muito grande na construção do imaginário literário ocidental. Quanto às falsificações do Borges, há uma que é muito curiosa.
O escritor Milton Hatoum me chamou a atenção para o fato de que Borges escreve, num texto que agora eu não me lembro exatamente qual é, o seguinte: "Não é estranho que exatamente na noite 682, por uma mágica distração do copista, Shahrazád conte para o rei Shaaria a sua própria história?".
E Italo Calvino foi ainda mais longe, vendo aí um jogo de espelhos que muito agradava ao Borges, ou seja, Shahrazád conta pra Shahriyár uma história na qual Shahrazád conta para Shahriyár uma história na qual Shahrazád conta para Shahriyár uma história... E Milton havia me dito que em nenhuma tradução que ele consultou tinha, na noite 682, essas coisas. Eu fui ver nas minhas edições árabes, e também não havia.
Quando fui fazer meu pós-doutorado no Cairo, no Egito, um amigo me avisou que a edição de Breslau, uma edição em árabe feita na Alemanha por Maximiliano Habicht, um arabista alemão do começo do século 19, tinha isso. Esse sujeito, Habicht, alegou editar um manuscrito tunisiano das "Mil e Uma Noites". Depois disso a crítica, mais especificamente Duncan McDonald, um arabista inglês, mostrou que tudo era mentira, pois não existia nenhum manuscrito tunisiano das "Mil e Uma Noites". Lá no Cairo descobri uma edição fac-similar dessa edição de Breslau e a comprei.
Ao folheá-la, no último volume, exatamente na noite 999, eis que encontro Shahrazád contando para Shahriyár a sua própria história. Só que ela não tem o sabor da imaginação do Italo Calvino e do Borges. Mas fiquei assombrado porque eu não pude confirmar se o Duncan McDonald, nas resenhas que fez a respeito dessa edição falsa, falou, em algum momento, desse jogo de espelhos. Porque, se ele citou, é possível que o Borges tenha lido isso em algum lugar, mas se não, alguém pode ter dito isso para o Borges. E, se ninguém disse, isso é uma coisa absolutamente assombrosa de Borges. Como se diz nas "Mil e Uma Noites", esse é o "espanto dos espantos".

Metalinguagem: Um texto sobre a crônica


Resmungos
 
FERREIRA GULLAR
 
Ao ser convidado a escrever crônicas para este jornal, minha primeira reação foi de euforia: vou escrever para um grande jornal! Mas, passado o primeiro momento, veio-me do fundo da consciência esta pergunta: mas escrever o quê? E quase telefono para o jornal desistindo.
Sim, eu não moro em São Paulo, logo não poderei me aproveitar dos temas locais, restando-me falar dos temas nacionais. E quem sou eu para tratar de tais temas, que são preponderantemente técnicos, como os econômicos, os jurídicos, os esportivos...?
Sobrariam os temas políticos, que não exigem tanta especialização, mas requerem estar "por dentro", enquanto eu estou sempre por fora, já que não me dou com deputados, senadores, ministros; com prefeitos e governadores, nem se fala!
E presidentes da República? O único que me convidou para almoçar -e no Palácio da Alvorada- foi José Sarney, mesmo assim porque fomos companheiros de juventude em São Luís. Mas não os culpo, pois sei muito bem não haver razão nenhuma para um presidente da República conversar com poetas que, por definição, vivem nas nuvens. Por que você acha que Platão os expulsou de sua República ideal? Costumo dizer que, se dependesse dos poetas, o mundo estaria na idade da pedra, já que nem a faca de sílex teria sido inventada, muito menos a roda, o arado, o avião, o computador... Nem tampouco -diga-se a nosso favor- a bomba atômica e o fuzil AR-15.
Assim foi que, quanto mais refletia, mais vontade tinha de desistir. E me dizia: bom de fato é escrever para jornais de menor peso e circulação, que pouca gente lê e, conseqüentemente, escreva você o que escrever, fica por isso mesmo. É quase como se falasse sozinho no seu quarto, ou numa mesa de bar: aí você diz o diabo, esculhamba com os poderosos e famosos sem correr o risco de ter seus argumentos reduzidos a pó publicamente por um especialista nem de ser processado por calúnia ou coisa semelhante.
A verdade é que quanto mais pensava mais achava que tinha entrado numa fria. Esse pessoal da Folha é maluco, por que me fazer um convite desses se eu não entendo de nada? É verdade que eu vivo pensando, que chego ao ponto de ligar o aquecedor para tomar banho e me esquecer do banho ou, mergulhado nas minhas reflexões, deixar de me vestir e sair nu do banheiro. Por tanto pensar, certa vez mijei na lata de lixo achando que era o vaso sanitário e, na praia, imerso em cismas, tirei o calção para entrar na água acreditando que estava em meu banheiro.
Penso sobre qualquer assunto, desde uma videoinstalação sacal que vi no MAM do Rio até a matéria escura que o Stephen Hawking diz preencher a maior parte do espaço cósmico. É bem possível, ao entrar em meu escritório, encontrar-me fazendo um discurso contra a teoria do Big Bang: "Não dá pra acreditar que os bilhões de galáxias que existem hoje estivessem, no começo do universo, comprimidos numa esfera do tamanho de uma bola de tênis!". Por isso mesmo, já na juventude, mal chegado ao Rio, fui logo apelidado sarcasticamente de "profissional do pensamento". Donde concluir-se que, como penso sobre tudo sem de nada entender, posso adotar a definição que deu de si mesmo Otto Lara Resende: "Sou um especialista em idéias gerais".
Dizer que não entendo de nada é exagero. Aliás, não é aconselhável exagerar na modéstia nem ficar se depreciando em público porque corre-se o risco de que, neste ponto, todos concordem com você. "Se ele mesmo o diz..." De alguma coisa entendo, creio eu, de arte, por exemplo, e há pessoas que o admitem. De fato, dediquei -e ainda dedico- a maior parte de meu tempo intelectual a pensar sobre esse assunto. Já escrevi até livros sobre ele.
Mas há controvérsias, já que os críticos de hoje afirmam que arte é tudo aquilo que se disser que é arte, o que torna dispensável um crítico como eu. De qualquer maneira, não fui convidado para fazer aqui crítica de arte, que é um gênero, como se vê, talvez dispensável; fui convidado para escrever crônicas, que ninguém sabe direito o que é.
Esta última reflexão me deu ânimo novo, porque, se ninguém sabe direito o que é crônica, posso escrever o que me der na telha, sem correr o risco de o chefe de Redação me devolver o original com a observação de que "isto não é crônica". Mas logo caí outra vez no desânimo ao considerar que tenho certa responsabilidade intelectual, não posso ficar escrevendo abobrinhas sob pena de me desmoralizar.
Se é verdade que a crônica é tida como um gênero menor, no meu caso ela corre o risco de ficar menor ainda, se não oferecer ao leitor o que ele supostamente espera de mim, e que eu não sei o que é.
Se esperar que me mostre um homem culto, estou perdido. Um dos traços mais lamentáveis da minha personalidade é a facilidade com que esqueço tudo o que leio, a não ser quando estou invocado com determinado assunto e aí me debruço atentamente sobre o livro, leio e releio cada frase, tomo notas; fora esses casos, nada consigo guardar na memória. Certa vez falei entusiasmado a um amigo do "Coridon", de André Gide, e contei-lhe a história narrada no romance. Semanas depois, nos encontramos: "Leu o livro? Gostou?", perguntei-lhe. E ele: "Você é maluco! A história que me contou não tem nada a ver com o romance de Gide, cara!". É isso aí, quem não tem memória não pode ser culto.
Mas tenho uma atenuante: é próprio dos poetas só guardar na memória o que os comove. Alegarão que nem todos, já que há poetas cultíssimos. De qualquer modo, quem nada guarda na memória tem a possibilidade de estar sempre vendo as coisas pela primeira vez e descobrir nelas -num filme, num quadro, num poema- aspectos inusitados, o que daria validez a um aforismo que forjei há muitos anos numa época em que me dedicava a esse gênero literário e que diz: "Um homem desprevenido vale por dois". Certamente não em certos pontos da cidade do Rio de Janeiro ou de São Paulo.
Como o leitor já deve ter percebido, toda esta lengalenga é para sugerir-lhe que não espere demasiado deste cronista bissexto. Farei o possível para não ser chato nem gaiato demais. Dificilmente evitarei algumas críticas ácidas, pois muitas das coisas que leio nos jornais e vejo na televisão me deixam irritado a resmungar com meus botões. Aqui terei a oportunidade de fazê-lo em público. Por isso, em muitas ocasiões, o leitor não encontrará aqui crônicas propriamente e, sim, resmungos.
 

Exemplo de redação


Lições do Titanic

Josué Gomes da Silva
 
O naufrágio do Titanic, cujo centenário transcorreu ontem, traz tristes memórias, heroísmo, coragem, arrogância, fé, lendas e mitos. Por isso e pela perda de cerca de 1.500 vidas, é tragédia marcante da aventura humana. Diante de tal lembrança, conforta-nos a sabedoria de aprender com os erros, que pode e deve ser praticada por todos.
Cem anos após a triste noite de 14 de abril de 1912, quando um iceberg interrompeu a travessia do Atlântico entre Southampton (Reino Unido) e Nova York (EUA), a frustrada viagem inaugural do navio ainda é um legado de preciosas lições. E todas aplicam-se a distintas situações, inclusive na gestão empresarial.
A primeira refere-se à previsão relativa aos recursos de contingência. Nunca devem ser menores que a efetiva demanda em casos de incidentes e acidentes. Isso vale para reservas financeiras, alarmes, áreas de escoamento, estruturas e brigadas de incêndio. O Titanic tinha só 16 botes salva-vidas, muito aquém do ideal.
A segunda lição é sobre a necessidade de testar qualquer equipamento, máquina, veículo, processo e sistema antes de ser colocado em operação comercial. O Titanic teve apenas seis horas de testes, e muito abaixo de sua velocidade máxima. Talvez por isso, os timoneiros não tenham conseguido manobrá-lo com eficiência ante a iminência do choque.
A comunicação, sempre decisiva e estratégica, é o objeto da terceira lição. O Titanic possuía o moderníssimo telégrafo do Sistema Marconi. Porém, muitos não sabiam operar aquela "maravilha sem fio" e alguns navios que poderiam tê-lo socorrido nem sequer contavam com ela.
Os meios de comunicação -incluindo os mais recentes, como redes sociais, tráfego de dados, G3, G4 e outros recursos cibernéticos- precisam ser bem utilizados e todos os interlocutores devem compartilhá-los de maneira eficaz no domínio da tecnologia.
Outra análise importante é que a arrogância nunca deve subjugar o bom senso. A humildade é sempre boa conselheira, mesmo quando a autossegurança resulta de grande experiência ou baseia-se no uso de avançada tecnologia. O excesso de confiança pode explicar o motivo de o capitão Smith ter ignorado os alertas de gelo no mar e ter determinado velocidade máxima.
E ainda, entre muitos exemplos, jamais se deve relegar a segundo plano a política de recursos humanos, o treinamento e o papel dos colaboradores -que são o mais importante patrimônio de qualquer organização ou empreendimento. Tal cuidado faltou no Titanic.
Que a triste e centenária lembrança, registrada no Reino Unido e em todo o mundo, não seja em vão. Aprender com os equívocos do passado nos capacita a um futuro sempre melhor.


fonte:http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/37163-licoes-do-titanic.shtml

terça-feira, 2 de abril de 2013

VOCABULÁRIO- TIRINHAS

VÁ AO TEATRO, MAS NÃO ME CHAME


Com textos herméticos, a Ilustrada escreve para os "iniciados" e não reflete a variedade de peças em SP

"SUAS FALAS FLUEM como jorros assonantes de significados múltiplos condensados."
""Otro", criação do Coletivo Improviso, sob a direção de Enrique Diaz e Cristina Moura, tensiona fronteiras entre territórios estáveis da dimensão espetacular para encontrar novos limites."
"Num mundo cada vez mais "pirandelliano", em que milhares de verdades habitam uma mesma realidade, a peça decreta o respeito à liberdade absoluta da incerteza."
Se você não entendeu as frases acima, não se acanhe. Eu também não entendi. Tiradas de reportagens e críticas da Ilustrada, elas são exemplos do rumo que a cobertura teatral tomou no caderno.
A preocupação em ser compreensível não existe. Os textos, alguns inexpugnáveis, são feitos para os que trabalham na área ou para "eruditos". O leitor, coitado, termina sem entender o que é a peça e sem condição de decidir se vai ao teatro ou se corre para o cinema.
Mesmo quando se trata simplesmente de apresentar uma estreia, não de criticá-la, muitas vezes o jornalista se esquece de resumir a trama, citar os atores, dar a duração do espetáculo. Há uma preocupação excessiva com a cenografia, a luz e com referências a outros dramaturgos, que, em geral, fazem parte do repertório de quase ninguém.
Na quinta-feira passada, por exemplo, o texto principal da página de teatro da Ilustrada era sobre "O Contrato". Foram 75 linhas de texto, que começava com aspas de outra peça ("O particular acabou"), trazia um histórico do encenador, mas quase nada do enredo.
Para entender algo, o melhor eram as cinco linhas do Guia: "Dentro de um escritório, um gerente submete sua funcionária a provações. Ele inferniza a vida dela, que resiste para não perder seu bom salário".
Além de reformar os textos, é preciso repensar a pauta, que deve incluir mais musicais, os espetáculos "blockbuster", que ficam anos em cartaz, e descobrir os novos talentos do "stand-up". Não significa aplaudir o que faz sucesso, apenas sair um pouco da praça Roosevelt.
É importante mexer nessa cobertura, porque o teatro em São Paulo nunca foi tão variado: de "Mamma Mia!" à "Macumba Antropófaga" de Zé Celso, há alternativas de sobra nas 140 peças em cartaz semanalmente. Hoje, o teatro é para todos, mas as críticas, para poucos.
fonte:http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ombudsma/om2108201101.htm
 
 

PODER DA ETIMOLOGIA

Quando o professor Nemésio explicou a Cacilda que

o nome dela, segundo Zambaldi, quer dizer “a que

combate com lança”, a moça ficou triste. É tão doce

esse nome (experimentem pronunciá-lo) e tão meiga

a sua portadora, que a revelação lhe pareceu a mais

injusta possível.

O pior é que os irmãos começaram a brincar com ela

de maneira provocadora, dizendo a cada instante:

“Cacilda, onde você escondeu sua lança?” Ou: “O

amolador de facas está na esquina da rua Júlio de

Castilhos. Leve a lança para ele afiar, Cacilda.”

De aveludada que era, Cacilda tornou-se suscetível e

mesmo agressiva. O namorado rompeu com ela,

dizendo que tinha medo de uma lanceira polonesa. E

Cacilda quedou, fera e tristinha, em seu quarto onde

havia gravuras de guerras napoleônicas.

A família procurou o professor Nemésio que,

benevolamente, se dispôs a pacificar a moça: “Minha

filha, isso de etimologia é muito discutível, cada um

diz uma coisa, e esse tal de Zambaldi já foi

desacreditado por pesquisas recentes. O verdadeiro

significado do nome de uma pessoa é o que lhe confere

a pessoa que o tem. Você é tão encantadora que seu

nome só pode significar você mesma, isto é, encantos

mil.”

Cacilda acreditou e voltou ao estado gentil, mas

sucede que, de vez em quando...

ANDRADE, Carlos Drummond de. Prosa seleta. Rio de Janeiro:



Nova Aguilar, 2003.

O poder da palavra


Será lançada a primeira ameaça séria ao reinado do Aurélio. Portentosa obra de catalogação do português falado e escrito no Brasil, o Aurélio pode deixar de ser sinônimo de dicionário. Desde sua primeira edição, há 26 anos, o livrão do professor Aurélio Buarque de Holanda Ferreira vendeu um total de 45 milhões de cópias em suas três versões. Talvez não deixe de ser sinônimo de dicionário. Mas terá de dividir o título com o Houaiss (pronuncia-se uáis), como certamente ficará conhecido pelos brasileiros o novíssimo Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, cujos primeiros exemplares começam a ser vendidos no Rio de Janeiro e em São Paulo a partir desta semana e em todo o país dentro de dez dias. O preço oscilará em torno de 125 reais. O Houaiss levou uma década para ficar pronto e é resultado do trabalho de 140 especialistas brasileiros, portugueses, angolanos e timorenses. A obra é a materialização do sonho de Antônio Houaiss, considerado o maior filólogo do século XX em língua portuguesa, morto em 1999, pouco antes de ver o livro terminado. Diplomata de carreira, Houaiss foi ministro, presidente da Academia Brasileira de Letras e refinado gastrônomo. Mas nada absorveu mais sua existência do que a obsessão de ver publicado o mais completo dicionário da língua portuguesa.
Conseguiu? Em números absolutos, o novo dicionário é imbatível. O Houaiss, com um total de 228.500 verbetes, tem 68.500 a mais que o Aurélio e 28.500 a mais que o Michaelis, o outro competidor. Em Portugal, o recém-lançado dicionário da Academia de Ciências tem 120.000 verbetes. Só o tempo dirá, porém, se o Houaiss será aceito pelo grande público como a fonte primordial da língua viva falada hoje no Brasil - o olimpo que todo grande dicionário almeja. "Por todos os critérios técnicos válidos, o Houaiss é o mais completo e moderno dicionário de português", diz Roberto Feith, dono da editora Objetiva, que publicou a obra e fez dela o seu mais ousado empreendimento. "Para lançar um Paulo Coelho, invisto cerca de 500 000 reais. Para um outro best-seller, ponho 100 000 reais. Com o dicionário Houaiss gastamos 5 milhões de reais", compara Feith. Na semana passada, o editor pôs os olhos pela primeira vez no resultado de sua milionária aposta editorial. Ele foi vistoriar os primeiros dois contêineres com milhares de dicionários, volumes de capa ocre, revestidos de tecido de alta resistência, impermeável, com baixos-relevos, serigrafias e nome de batismo em letras douradas. Os livros acabavam de aportar no Rio de Janeiro, vindos da Itália, onde foram impressos. A Objetiva não encontrou no Brasil quem atendesse às exigências técnicas da obra, especialmente a montagem de 3.008 páginas em um único volume de 3,8 quilos.
"Sem ousarmos nos comparar com o Oxford English Dictionary, com seus 615.000 verbetes, acho que conseguimos chegar aonde outros dicionários de português não conseguiram", diz Mauro Villar, filólogo, sobrinho de Antônio Houaiss, responsável pela conclusão da obra depois da morte do tio. Houaiss levou a equipe a mergulhar nas profundezas do passado e produzir quase uma enciclopédia. Por isso o Houaiss é tão mais volumoso que os concorrentes. Mas atenção. Nem o Houaiss pode se gabar de ter abraçado todas as palavras do idioma. Os dicionaristas orgulham-se de transformar em verbetes palavras que atendem a dois requisitos: estão vivas e são matrizes do idioma. Ou seja, delas derivam outras. Quando se somam aos verbetes as palavras compostas e os termos técnicos, não há obra que dê conta de catalogar todo o universo da língua. Quem chegou mais longe foi o Dicionário Filológico da Academia Brasileira de Letras, que registra 360.000 palavras. "Qualquer língua moderna conta com milhões de palavras potencialmente dicionarizáveis. Calcula-se que a medicina contribua com cerca de 600.000 acepções, a química e a farmacologia, com 2 milhões, apenas superados pela zoologia. Só a classificação dos insetos exige 2 milhões de termos", explica Villar.
Como todo dicionário com forte acento enciclopédico e histórico, o Houaiss oferece, ao mais superficial manuseio, um delicioso passeio pela linhagem evolucionária das palavras. Os vocábulos, como as pessoas, podem ser promovidos ou rebaixados. Tome-se o exemplo do que foi legado às gerações posteriores pelo militar aventureiro alemão Friederich Hermann Schönberg, que nos idos de 1615 comandava tropas portuguesas contra os espanhóis e ditava a moda na corte. Ele não viveu o bastante para ver seu pomposo sobrenome acabar rolando nobreza abaixo. Em Lisboa, de Schönberg para "chumbergas" foi um pulo. No Brasil colônia, outro tombo fenomenal: virou "chumbrega", coisa ruim, ordinária, reles. Já a palavra marechal subiu de elevador. De artesão encarregado das ferraduras dos cavalos em 1086, a palavra marechal foi alçada ao mais alto posto na hierarquia do Exército brasileiro mais de 800 anos depois. Outra palavra rebaixada pelo Houaiss é uma daquelas que podem aparecer tanto numa questão do vestibular quanto no Show do Milhão. Qual é a maior palavra da língua portuguesa? Quem respondeu "anticonstitucionalissimamente" errou. Ela perde para outra ainda mais extensa.Quem ostenta o título agora é "pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiótico". São 46 letras. Seu significado? Bem, ela descreve o estado de quem é acometido de uma doença rara provocada pela aspiração de cinzas vulcânicas. Com curiosidades, segredos garimpados em centenas de obras consagradas e uma pesquisa histórica profunda que datou a entrada de quase todas as palavras no idioma, o novo dicionário vai brigar pela posição de a maior autoridade da língua pátria, a sétima do mundo, com 200 milhões de falantes, à frente do japonês, francês e alemão. "Nosso objetivo é que as pessoas saquem do Houaiss numa discussão para resolver sem contestação uma dúvida de linguagem", diz Feith.
Não é pouca ambição. Obra plácida, neutra em sua aparência de celeiro do idioma, com a matéria-prima disposta em ordem alfabética, os dicionários, no fundo, escondem rivalidades terríveis. Os mais mansos chegam ao mundo com o objetivo apenas de descrever como o idioma está sendo usado pelas pessoas em determinados períodos da História. Outros, como o Aurélio e o Houaiss, querem ser autoridade. São dicionários brigões, normativos, querem dar receita do bom uso da língua. Seus autores esperam que as pessoas recorram a eles em caso de dúvidas cruéis de linguagem. Dar a palavra final, ser a obra de maior credibilidade, é o grande prêmio. Poucos chegam lá. Já é um grande passo para um dicionário quando o nome do autor se confunde com a própria obra. O primeiro dicionário da história ocidental a obter tal honraria foi uma lista de poucos milhares de palavras latinas compiladas pelo intelectual italiano Ambrogio Calepino em 1502. Seu Dictionarum interpretamenta fez enorme sucesso numa Europa sedenta de conhecimento que mal se erguia das sombras da Idade Média. Historiadores encontram freqüentes referências à obra. Uma delas é a prova de que o dicionário fazia parte do cotidiano da elite letrada - menos de 1% da população européia de então. Um nobre inglês morto em Lancashire em 1568 registrou em seu testamento que deixava como herança, entre outros objetos de valor, seu "calepino". Mais tarde, outros dicionários atingiram essa singularidade. O Covarrubias, na Espanha, e o Caldas Aulete, em Portugal. O Johnson e o Webster nos países de língua inglesa. O Aurélio no Brasil.
Quando se examina a complexidade desse tipo de empreitada fica claro que, para a equipe envolvida, prêmio mesmo é pôr um ponto final à obra. Ao cabo dos trabalhos, o dicionarista-chefe do projeto Houaiss, Mauro Villar, estava à beira de um ataque de nervos. Típico da atividade. É famoso entre as pessoas do ramo o registro que ficou da triste vida do inglês Thomas Cooper, que se meteu em 1565 a fazer um Thesaurus Linguae Romanae et Britannicae ("Tesauro da língua romana e britânica"). "Ele estava com metade do trabalho pronto quando a paciência de sua mulher se esgotou. Ela jogou todos os papéis na fogueira. Mas era tão grande o zelo de Cooper que ele começou tudo de novo, do zero", escreveu um século mais tarde o historiador John Aubrey. Em 1789, a Academia de Ciências de Lisboa arregimentou forças para criar um dicionário completo da língua portuguesa. Com todo o empenho, não conseguiu passar da letra A. Apesar do fracasso, o volume remanescente é considerado pelos filólogos uma peça preciosa. Dois séculos se passaram e só no ano passado a academia finalmente editou seu dicionário. Na Alemanha, os irmãos Grimm começaram a compilar um léxico no século XIX. Ele só foi dado por concluído 126 anos depois, em 1960. Por essa razão, os Grimm tornaram-se famosos planetariamente como autores de contos infantis e não como filólogos. Editar o dicionário Houaiss em uma década foi um feito.
"O primeiro passo para lançar um dicionário é a motivação. Por que fazer um quando já existem tantos? A segunda coisa é delimitar o número de verbetes. A terceira é estabelecer um prazo para terminar", conta Mauro Villar. A motivação foi dada por Antônio Houaiss em pessoa. Ele queria associar seu nome ao mais completo dicionário. Houaiss lembrava sempre que o próprio Aurélio se define como uma obra inframédia, ou seja, que não chega a contemplar nem a metade das palavras do idioma. Houaiss julgava a obra de Aurélio meritória, mas entendia que sua formação de professor de português, excelente por sinal, era fraca em instrumentos teóricos para levá-lo às profundezas do idioma. Outras obras, Houaiss as via defasadas e incapazes de satisfazer quem quisesse ultrapassar os desafios do uso correto do português atual. Não fossem essas razões, havia a mais alta: a ambição de escrever um dicionário que representasse sua própria visão da língua portuguesa. A erudição, somada ao conhecimento e à tenacidade de alguém que levou apenas nove meses para traduzir a obra inaugural da modernidade, o Ulysses, do irlandês James Joyce - enquanto sua mãe morria de câncer -, fez de Houaiss o homem talhado para a tarefa monumental.
Houaiss queria uma obra que reunisse com igual ímpeto os vocábulos utilizados pelos grandes escritores e aqueles gerados pelo linguajar mais comum das pessoas no dia-a-dia. Ele almejava profundidade histórica e modernidade. "Algo que ombreie com o desenvolvimento alcançado em outras línguas românicas, a exemplo do francês, do espanhol, do italiano, do catalão", como escreveu no prefácio do novo dicionário. A definição do tamanho do dicionário só se deu depois que os envolvidos na produção dicidiram que a obra deveria ficar pronta até o ano 2000. Dados o tempo disponível e a complexidade da tarefa, os especialistas reunidos pelo Instituto Antônio Houaiss, organização criada pelo filólogo para o estudo do idioma, estabeleceram que o dicionário teria 228.500 verbetes. Sem disciplina férrea, não passariam da letra A. "Com todo o esforço de organização, a sensação que tínhamos era a de um piloto tentando levantar vôo com um avião ainda em construção", define Mauro Villar.
As primeiras fases do projeto, antes da entrada da editora Objetiva, foram bancadas pelo Instituto Antônio Houaiss com receitas obtidas de fontes privadas e estatais. Conseguiu-se o suficiente para pagar a dezenas de pesquisadores. Os melhores chegavam a ganhar 5.000 reais por mês. Colaboradores técnicos recebiam 2 reais por verbete. Quando o dinheiro acabou, a seis meses do término da obra, todos trabalharam de graça. Toda essa gente produzia o que exatamente? Pequenos textos com os significados das palavras, sinônimos e antônimos, mas igualmente a história ou a etimologia dos vocábulos. A mecânica do trabalho tinha um componente braçal. Foi nessa fase que o computador ajudou muito. Os pesquisadores faziam cópias digitais, com a ajuda de um escâner, de artigos de revistas, jornais, livros e outras fontes. Tudo isso ia para um arquivo digital comum, de forma que as modificações podiam ser instantaneamente compartilhadas. "Sem isso não teríamos conseguido acelerar os trabalhos", lembra Feith. Todos seguiram as orientações de Houaiss, consolidadas em um manual de redação com 100 páginas, que se tornou ainda mais valioso depois de sua morte. Os verbetes também só recebiam o ponto final depois de confrontados com os de outros dicionários. "Começamos pela letra B, mais simples, para 'esquentar' os motores e testar a eficiência de nossa rotina. Depois passamos ao D e, finalmente, enfrentamos o A, a letra mais extensa e complexa", explica Mauro Villar.
Se consideramos como primeiro dicionário da história uma pequena lasca de pedra com uma dúzia de vocábulos de um idioma obscuro encontrada na antiga Mesopotâmia, então essa compulsão humana de listar palavras tem pelo menos 2.700 anos, ou 27 séculos. De lá para cá, a evolução foi tremenda. Até o século XIV, por exemplo, as palavras eram organizadas não em ordem alfabética, mas em grupos de significados parecidos. Esse tipo de dicionário sobreviveu aos nossos dias. São os tesauros, dicionários de sinônimos ou de idéias correlatas. Ninguém, porém, traçou tão bem quanto Noah Webster (1758-1843), famoso lexicógrafo americano, quais devem ser os critérios fundamentais para separar as palavras dicionarizáveis das que não merecem essa glória. Aconselhou o sábio que se leve em conta o seguinte:
 a mudança é normal;
 a linguagem falada é a linguagem;
 o que define a correção é o uso;
 todo uso é relativo.
Como toda regra simples, a de Noah Webster é brilhante, mas não esgota a questão: por ter mais verbetes que o Aurélio, o Houaiss é um dicionário, sem dúvida, mais completo. Mas é o melhor? Muito antes de fazerem seus dicionários, Aurélio Buarque de Holanda e Antônio Houaiss já divergiam sobre o número ideal de palavras que uma obra do gênero deve ter. Aurélio sempre foi favorável a uma lista menor concentrada em palavras efetivamente usadas no dia-a-dia. Houaiss pendia para dicionários mais completos, históricos, enciclopédicos. Essa, aliás, é a mais resistente das brigas entre a maioria dos dicionaristas de qualquer idioma. O estudioso americano David Foster Wallace sugere desafiadoramente que, se tamanho e modernidade são documentos, o dicionário de inglês ideal abrigaria tantos termos que pesaria 2 toneladas e teria de ser atualizado a cada meia hora. "Claro que um dicionário assim não tem valor. Por isso é preciso alguém com autoridade para escolher as palavras", diz Wallace. "Aí é que está a beleza autoral, pois toda escolha será inevitavelmente ideológica."
A precaução básica de Houaiss, segundo Mauro Villar, foi evitar a transformação da linguagem de forma muito veloz, o que, para ele, seria catastrófico. Também temia que o ritmo fosse lento demais e seu dicionário registrasse uma língua moribunda e não aquela que pulsa nas ruas, lojas, estádios, estações de metrô e bares. Quando se mede o ritmo que efetivamente empreendeu ao dicionário, nota-se que Houaiss foi muito rápido no gatilho. Para começo de conversa, não teve nenhum tipo de preconceito com os vocábulos de origem estrangeira. Estão lá, devidamente dicionarizadas, as palavras popularizadas pela internet, como site, www, web e hipertexto. O americano Wallace conta que antes da internet só Sigmund Freud, o pai da psicanálise, provocara, no começo do século XX, uma reação tão grande por causa da avalanche de palavras estrangeiras, no caso alemãs, que espalhou pelos idiomas de todo o mundo. Com as reações costumeiras. "Houve uma enorme resistência dos puristas da língua inglesa quando Freud criou ou redefiniu termos como libido, narcisismo ou ansiedade", lembra Wallace. É a mesma situação que se vive em certos círculos intelectuais do Brasil de hoje, cujo paroxismo é o projeto de lei do deputado comunista Aldo Rebelo que prevê multas para quem usar palavras de origem estrangeira.
A própria expansão da língua portuguesa é um exemplo a desmentir a tese do deputado. Os estrangeirismos foram uma fonte inestimável de riqueza do idioma pátrio. Na Idade Média, o português era falado com o uso de apenas 15.000 palavras. Em meados do século XVI, com as grandes expedições marítimas, esse número saltou para 30.000. No fim do século XIX, os dicionários registravam cerca de 90.000 vocábulos. Na década de 80, um levantamento da Academia Brasileira de Letras dava conta da existência de 360.000 palavras. Os "empréstimos" de palavras estrangeiras, longe de empobrecer, tornam a língua hospedeira mais abrangente e culta. "Não poderia ser de outra maneira. Tudo o que vem de fora para simplificar permanece. Não adianta espernear. Quem dirá 'controle de embarque de passageiros' em vez de 'check-in'?", desafia o professor Leodegário de Azevedo Filho, presidente da Academia Brasileira de Filologia e autoridade mundial em Camões. O avanço do inglês sobre os idiomas é visto como fato natural entre filólogos e dicionaristas, devido à liderança tecnológica dos Estados Unidos. A tecnologia de ponta trouxe manuais, apostilas, cursos e termos que consagram o inglês a ponto de hoje ele ser falado por 1 bilhão de pessoas, na maioria bilíngües. Antes do inglês, o francês teve status de língua franca do mundo - e atraía sobre si a mesma fúria nacionalista dos defensores dos idiomas pátrios.
Como mero depositário dos termos de uso corrente, todo dicionário é uma obra hiperdimensionada. Um estrangeiro que fale bem o português básico terá dominado 1000 vocábulos do idioma. Fora os termos técnicos, as principais línguas escritas usadas atualmente no mundo esgotam-se em 60.000 palavras. No Brasil, os filólogos estimam que o vocabulário básico reúna cerca de 3.000 termos. As populações em geral conseguem se comunicar com 800 a 1.400 palavras. Pessoas cultas valem-se de 3.000 a 5.000 vocábulos. Sabe-se que a obra do romancista Camilo Castelo Branco foi construída com nada menos que 15.000 vocábulos. Maior escritor brasileiro, Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Braz Cubas, lançou mão de 6.700 diferentes palavras. William Shakespeare, cuja obra foi escrita no século XVII, serviu-se de 25.000 vocábulos, dos quais criou pelo menos um quinto. Diante do estoque de palavras usadas pelos gênios acima, fica difícil imaginar quem precise das centenas de milhares de vocábulos contidas em um dicionário para se fazer entender. "A comunicação verbal ou mesmo escrita é complexa. Menos pode ser mais. Às vezes, quem sabe muito pode enrolar-se num vocabulário empolado e não conseguir transmitir o que deseja", diz Reinaldo Polito, professor de expressão verbal, que, entre seus alunos, tem políticos, atores e apresentadores de televisão. Conhecer um número maior de palavras, porém, é sempre uma vantagem. Mesmo que seja apenas uma vantagem potencial. Uma pesquisa da Harvard Business School mostrou que, para galgar um nível hierárquico nas empresas americanas, o funcionário é obrigado a enriquecer seu vocabulário em pelo menos 10%.
A editora Objetiva distribuiu algumas cópias do Houaiss a uma dezena de filólogos e estudiosos do português. Cada um teve de assinar um termo de confidencialidade para não atrapalhar a surpresa que a editora espera criar com o lançamento. O dicionário Houaiss foi bem recebido. "É uma obra aberta, sem preconceitos, que incorpora arcaísmos, indianismos, africanismos, regionalismos brasileiros e até asiaticismos. Isso a torna tecnicamente impecável", define o professor Leodegário. Ele não enxerga, porém, vantagens em tentar ser o mais completo dicionário. É um objetivo inalcançável. "Basta o leitor não encontrar uma palavra no dicionário para amaldiçoá-lo", lembra Leodegário, citando outro filólogo, Oswaldo Serpa: "O destino do dicionarista é conviver com a ingratidão humana".
"Vocês não estão fazendo só um dicionário, estão fazendo poesia", sentenciou o escritor português José Saramago, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, que acompanhou parte dos trabalhos da equipe do Houaiss. Saramago se encantou com a definição do verbete "saudade" apresentada a ele por Mauro Villar: "Sentimento mais ou menos melancólico de incompletude", como reza a primeira das trinta linhas dedicadas ao vocábulo do qual os usuários da língua portuguesa mais se orgulham por o julgarem intraduzível para outros idiomas. Outro ponto relevante do Houaiss é o fato de muitas vezes abandonar o campo do dicionário de língua e ir além, ingressando no enciclopedismo. "No verbete 'filipeta', por exemplo, Houaiss não se contenta em defini-lo como 'promissória fraudulenta'. Vai além, conta o crime e indica o criminoso, Felipe, um capitão da reserva do Exército que nos anos 50 aplicou um golpe no mercado financeiro", lembra o professor Evanildo Bechara, da Academia Brasileira de Letras. Uma das razões pelas quais o acadêmico considera a obra uma "revolução literária" é o fato de ter abandonado o recurso, usado em outros similares, de definir um verbete pela utilização sucessiva de sinônimos. "Houaiss ensina o significado", diz o acadêmico. "Se pecado há no novo dicionário, é o de dar mais do que se pede." O julgamento final do que foi conseguido, como Antônio Houaiss deixou escrito no prefácio da obra, caberá, como sempre, ao leitor.
 
 
OXFORD, O MAIOR DOS DICIONÁRIOS TEVE AJUDA ATÉ DE LOUCOS
Véspera de Ano-Novo, 1927. Ao sair do linotipo o derradeiro verbete da obra, os comedidos funcionários da gráfica da Universidade de Oxford se permitiram um "hurra!". Terminava a saga que já durava quase meio século, mais exatamente, 48 anos, da preparação do Oxford English Dictionary, a obra mais complexa e completa do gênero. Conhecido pela sigla OED, ele resultou de um clamor da sociedade culta da Inglaterra por codificar, listar, decifrar todas as palavras de seu idioma. A primeira edição da obra reuniu 414 825 verbetes. Eles exigiram 1,8 milhão de citações ilustrativas para tornar seu significado mais preciso. Tudo isso "condensado" em doze volumes. Se é que se pode chamar uma dúzia de livros de condensação. Colocados lado a lado, os tipos gráficos se estenderiam por 285 quilômetros. Apenas a letra T consumiu cinco anos de trabalho. Manter a papelada no lugar por décadas deu tanto trabalho quanto a empreitada intelectual. Às vésperas de mandar os originais para a impressão, parte da letra C havia sido roída por ratos. As folhas de papel contendo as palavras com a letra I foram parar misteriosamente num convento abandonado. A seção inteira com a letra F foi enviada por engano para Florença.
O dicionário mobilizou mais de 1 milhão de voluntários anônimos. Dois deles, Fitzedward Hall e William Chester Minor, entraram para a história. Eram loucos brilhantes. Hall abandonou a cátedra de sânscrito no prestigiado King's College e tornou-se um ermitão. Minor fora recolhido a um manicômio judiciário pelo assassinato de um operário quando, segundo seus advogados, se encontrava "fora de suas faculdades mentais". Ambos colaboraram durante vinte anos com a obra. Minor era exato como um atirador de elite. Ele tinha a última palavra sobre as dúvidas mais resistentes. Suas respostas chegavam por carta numa caligrafia impecável. Quando suas contribuições certas passaram de 12 000, os responsáveis pelo dicionário decidiram conhecê-lo pessoalmente. Só então descobriram que ele cumpria pena por assassinato. Até hoje a gigantesca aventura do Oxford nunca foi superada.
Como todo grande dicionário, o Oxford deve sua vida ao empenho inicial de uma única pessoa, no caso um abnegado professor chamado James Murray, nascido em 1837, em um vilarejo na fronteira com a Escócia, filho de um alfaiate. Por falta de dinheiro, aos 14 anos foi obrigado a deixar a escola. Tornou-se autodidata. Quando procurou emprego no Museu Britânico, apresentou como credenciais o fato de dominar 22 idiomas e dialetos: do sânscrito ao hebraico, do alemão ao dinamarquês, do grego ao português. Foi recusado.
Eleito para a Sociedade de Filologia, aceitou o desafio de compilar o grande dicionário da língua inglesa. Sua tarefa mais impressionante foi reativar o exército de voluntários que já haviam colaborado em inúmeras tentativas fracassadas anteriormente.
 
A ETERNA LUTA EM BUSCA DA PERFEIÇÃO
Morto em 1999, de câncer, aos 83 anos, Antônio Houaiss foi um homem de frustrações imerecidas: como diplomata, não chefiou embaixada, como etimologista, não viu pronta sua obra magnífica. Convidado por Itamar Franco em 1993 para chefiar a missão diplomática junto à Unesco, não aceitou porque a saúde começara a fraquejar. Eleito para a Academia Brasileira de Letras, com 36 votos do quorum de 38, fazia questão de declarar: "Não sou grande escritor. Não sou ficcionista nem poeta. Sou apenas um estudiosozinho da língua portuguesa. Um conhecedor da matéria, digamos". Diplomata, gastrônomo, etimologista, ministro da Cultura, presidente da Academia Brasileira de Letras, enciclopedista e dicionarista. Houaiss era um sedutor. Suas armas: a imensa cultura, charme, inteligência, brilho e infindável curiosidade pelo mundo. "Esses predicados deixavam mulheres e homens seduzidos", testemunha Francisco de Mello Franco, um de seus maiores amigos e íntimo colaborador. Nas mãos muito finas, um adereço freqüente, um copo alto de uísque Ballantine's.
Trabalhava como um bulldozer, atestam todos os que operaram sob seu comando. No Itamaraty, ingressou no fechadíssimo concurso em 3º lugar, empatado com o poeta João Cabral de Melo Neto. Seu primeiro desafio foi classificar e organizar, em menos de um ano, 14.000 instruções enviadas para embaixadas e consulados - trabalho que havia derrubado várias comissões. Nasceu no Rio de Janeiro em 1915, filho de imigrantes libaneses, família numerosa. Enquanto estudava latim e os clássicos gregos por conta própria, o intelectual precoce aprofundava-se na culinária. Mais tarde escreveria dois livros de receitas, esgotados rapidamente. Militante esquerdista, foi expulso do Itamaraty, para onde voltaria por decisão do Supremo Tribunal Federal. Em 1964 foi novamente cassado pelos militares.
 
A AVENTURA DAS PALAVRAS PELA HISTÓRIA
O Houaiss sugere a data mais provável de quando determinada palavra foi usada pela primeira vez na linguagem escrita. Muitas vezes há certeza. Em outras, faz-se especulação pura. As maiores fontes de palavras novas dicionarizáveis são os idiomas estrangeiros, as grandes descobertas ou teorias científicas revolucionárias, as guerras e o vocabulário popular. Abaixo, uma lista de palavras tiradas do Houaiss e de outros dicionários.
PALAVRAS ANTIGAS QUE SOBREVIVERAM
Anfitrião - Aquele que oferece e paga as despesas de um jantar, festa, banquete. Deve-se sua entrada nas línguas neolatinas ao escritor francês Molière, que em 1608 se apoderou do nome do rei tebano Amphitryon e o transformou num substantivo.
Banho-maria - Aquecer ou cozinhar uma substância numa vasilha colocada dentro de outra com água quente. Especulação histórica das boas. O Houaiss registra a existência de uma certa "Maria, a Judia", alquimista que aprimorou esse processo. Levanta-se também a possibilidade de se tratar de uma integração simbólica da Virgem Maria à mística do esoterismo alquímico, relacionado com o mito egípcio da deusa Ísis.
Baderna - Sinônimo de bagunça. Originou-se da exaltada e barulhenta tietagem dos admiradores da dançarina italiana Marieta Baderna, que viajou ao Rio de Janeiro, em 1851.
Camelô - Do francês camelot (1821), "vendedor ambulante de coisas de pouco valor". Segundo o Houaiss, no Brasil, a famosa revista humorística Careta já a utilizava com esse mesmo sentido em 1917.
Despautério - Grande tolice, despropósito, disparate. Vem de Despautère, nome afrancesado do gramático flamengo J. van Pauteren, autor de uma gramática confusa e desorientada muito difundida na Europa entre os séculos XVI e XVII.
Ladrão - Palavra mais antiga que o reino de Portugal, tem seu registro mais antigo no ano 1059. Originou-se provavelmente da designação dada aos soldados mercenários gregos desde os primórdios da era cristã. Eles eram chamados em latim de latro, ónis.
Larápio - Ladrão, gatuno. Os estudiosos dão como quase certo que se originou na Roma antiga, onde um pretor de nome Lucius Antonius Rufus Appius se assinava L. A. R. Appius e passava sentenças favoráveis a quem pagasse mais por elas. Assim, larápio tornou-se designativo de qualquer pessoa que aja de modo desonesto.
Mecenas - Financiador das artes. Vem diretamente de Caio Cilino Mecenas (60 a.C. - 8 d.C.), estadista romano que protegia artistas.
Pindaíba - Com o significado de estar na miséria, teve seu uso pioneiro detectado pelo Houaiss em 1899. Pode ter vindo das palavras da língua africana quimbundo mbinda, "miséria", mais uaíba, "feia", resultando em mbindaíba, e daí em pindaíba.
Silhueta - Sua origem remonta a um ministro das Finanças da França no século XVIII chamado Étienne de Silhouette, que tinha como hobby recortar em papel o perfil de amigos e colegas. Como ministro, anunciou grandes reformas mas quase sempre fracassou. Para ridicularizá-lo, o povo passou a chamar "à la silhouette" tudo o que tinha um aspecto inacabado, incompleto.
 
PALAVRAS QUE O SÉCULO XX CRIOU
Áudio - Do latim audire (ouvir), apareceu em 1913 no sentido mais usado hoje em dia: um som gravado ou transmitido. Vídeo foi cunhada em 1935, do latim videre (ver), quando foi necessário nomear a imagem produzida pelo primeiro televisor.
Bauru - Data de 1934. Sanduíche feito de pão francês, rosbife, queijo, ovo frito, tomate e alface criado pelo radialista Casemiro Pinto Neto, o "Bauru", nome também da cidade onde ele nasceu.
Biquíni - Outra contribuição francesa. Le Monde Illustré comparou o impacto do maiô de duas peças à explosão da primeira bomba de hidrogênio pelos americanos no atol de Bikini, no Pacífico.
Bicho-grilo - O Houaiss registra sua entrada no idioma em 1970: "indivíduo que segue a contracultura" e dá como origem uma explicação antológica: "por referência ao hábito de essas pessoas serem geralmente adeptas da alimentação natural, à base de verduras, legumes."
Bulimia - Para definir a desordem emocional que ataca principalmente jovens do sexo feminino preocupadas com sua forma e peso, só aparece, no inglês, em 1976. O Houaiss diz que existe em português desde 1881.
Depressão - Em uso desde meados do século XVIII, era sinônimo apenas de tristeza. Foi utilizada pela primeira vez para definir uma doença psicológica em 1905, num artigo da revista inglesa Psychological Review.
Gay - No sentido de homossexual, data de 1933 nos Estados Unidos. Especula-se que sua origem mais provável é uma música muito popular no país em 1868 chamada The Gay Young Clerck in the Dry Goods Store ("O alegre atendente da mercearia"). A música era cantada por um artista que imitava uma mulher.
Herpes - O vírus que inferniza as pessoas até hoje recebeu esse nome em 1925. Provavelmente se originou do latim "animal desconhecido".
Imagem - Com o significado da impressão que determinada pessoa, em geral alguém famoso, deixa nas demais, foi registrada pela primeira vez em 1908. Atribui-se ao escritor inglês G.K. Chesterton sua utilização na acepção acima.
Libido - A palavra que define a energia psíquica associada ao instinto sexual foi uma das muitas introduzidas por Sigmund Freud nos idiomas do mundo inteiro. O Houaiss informa que Freud buscou suas raízes no termo latino que significava "desejo violento". Seu uso em português foi registrado em 1928, dezenove anos depois de estrear em inglês.
Linha da pobreza - Nível mínimo de renda capaz de pagar uma existência decente para uma família. Mal o economista B.S. Rowntree a criara, em 1901, o então jovem político Winston Churchill já se utilizaria dela num discurso no mesmo ano. Churchill cunhou também, em 1908, o termo "seguro social."
Modelo - Em 1904 aparece em inglês para designar as mulheres que vestiam roupas em lojas para apresentá-las aos clientes. Desbancou, então, a palavra manequim. O Houaiss registra a entrada no português de supermodelo e top model sem datá-las.
Narcisismo - O alemão Näcke a cunhou em 1899. Em 1905, as pessoas entusiasmadas pela psicanálise já a utilizavam para descrever tecnicamente o fenômeno da autocontemplação. Popularizou-se ao longo do século XX até se confundir com vaidoso.
Pracinha - Soldado da Força Expedicionária Brasileira que lutou na Itália na II Guerra Mundial. Vem de praça, nome que se dava aos militares de baixa patente.
Paraíso fiscal - O Oxford toma como fonte original de seu uso na língua inglesa uma reportagem do jornal londrino The Times, de 1973. Houaiss registra a acepção moderna ("pequenos Estados onde pessoas e empresas fazem depósitos aproveitando-se dos baixos impostos ou mesmo de sua isenção"), mas não precisa a data.
Pop - O Houaiss a encontrou pela primeira vez na língua portuguesa em 1957. Define-a como "cultura popular em geral do eixo anglo-americano disseminada pelos meios de comunicação de massa." Em inglês, informa o dicionário Oxford, é usada desde 1926, denotando qualquer produção cultural com amplo apelo popular, em especial entre os jovens.
Sexy - "Sexualmente atraente". Foi encontrada pelo dicionário Oxford em um texto em francês de La Nouvelle Revue Française em 1925.
Socialite - Dá-se como certo ter sido criação dos redatores da revista semanal americana Time numa reportagem de 1928 sobre uma festa que reuniu nobres e aristocratas.
Tablóide - "Jornal sensacionalista". Não há registro de seu uso antes de 1918. Mas a expressão "jornalismo tablóide", sem a conotação sensacionalista, deriva de uma marca registrada em 1884 por um fabricante de cápsulas medicinais. A idéia era a de que se podiam publicar apenas "notícias concentradas".
AS NOVISSÍMAS DO DICIONÁRIO
Drag Queen - "Homem que se veste com roupas de mulher e imita voz e trejeitos tipicamente femininos."
Ficar - Está lá na 34° definição: "manter com alguém convívio de algumas horas sem compromisso de estabilidade ou fidelidade amorosa."
Imexível - "Em que não se pode mexer, inalterável." O Houaiss informa que o termo foi criado em 1990. Não diz, porém, que seu autor foi Antônio Rogério Magri, ministro do Trabalho do governo Collor. O filólogo Antônio Houaiss foi, em vida, ardente defensor da correção do termo que fez de Magri motivo de risadas.
Laptop - "Computador portátil provido de monitor de vídeo."
Larica - "Sensação de fome provocada pelo consumo de maconha."
Site - "Local na Internet identificado por um nome de domínio, constituído por uma ou mais páginas de hipertexto, que podem conter textos, gráficos e informações em multimídia."
Top model - "Manequim ou modelo de renome."
FERRAZ, Sílvio. O Poder da Palavra. Revista Veja, 29 ago 2001, p. 114-122