terça-feira, 3 de setembro de 2013

Sobre o ato de criação literária


 
 
            (1) Não é fácil lembrar-me de como e por que escrevi um conto ou um romance. Depois que se despegam de mim também eu os estranho. Não se trata de “transe”, mas concentração no escrever parece tirar a consciência do que não tenha sido o  escrever propriamente dito. (2) Alguma coisa, porém, posso tentar reconstruir, se é que é importa, e se responde ao que me foi perguntado.
            (3) O que me lembro do conto “Feliz Aniversário”, por exemplo, é de uma festa que não foi deferente de outras de aniversário;mas aquela que era um dia pesado de verão, e acho até que nem pus a idéia de verão no conto. (4) Tive uma “impressão”, de onde resultaram algumas linhas, a história inteira nasceu, com uma rapidez de quem estivesse transcrevendo cena já vista – e no entanto nada do que escrevi aconteceu naquela ou em outra festa. (5) Muito tempo depois um amigo perguntou-me de quem era aquela avó. Respondi que era a avó dos outros. ( 6) Dois dias depois a verdadeira resposta me veio espontânea,  com surpresa: descobri que aquela avó era minha mesma e dela era só conhecera, em criança, um retrato, nada mais.
 
LISPECTOR,Clarice. Explicação inútil. In: ____ Para não esquecer. São Paulo: Ática, 1984.

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