segunda-feira, 10 de junho de 2013

DISCURSO NOS SITES DE RELACIONAMENTO


Na internet, homens se vendem como carros"

Estudioso da linguagem usada em um site de namoro, o pesquisador francês Dominique Maingueneau diz a ÉPOCA que os homens "se vendem como se fossem carros" nesse ambiente virtual, descrevendo-se de forma muito objetiva. As mulheres, afirma Maingueneau, são mais misteriosas e tentam criar um clima romântico.

Gisela Anauate

ÉPOCA - O que é o ethos?
Maingueneau - Quando uma pessoa fala ou escreve, constrói um personagem. E manipula a linguagem, para fabricar uma impressão de honestidade. A partir disso, o leitor constrói uma imagem de quem está falando. Essa representação que a pessoa faz de si é o ethos.

ÉPOCA - Na internet, é possível medir o quanto esse ethos corresponde à realidade?
Maingueneau: É difícil. Se você não vê a pessoa, como saberá? É tudo virtual e são usados pseudônimos. É por isso que os usuários de sites de namoro procuram não se encontrar. Para não haver um choque entre a realidade e o discurso.

ÉPOCA - Qual o papel dos pseudônimos? Eles transmitem informações?
Maingueneau - Sim. Há pessoas que usam o pseudônimo só para ter um nome, como Paulo ou Fabiana. Outros, por meio desse nome, procuram construir um ethos, um personagem, como "vida do éden", "carícia", "história maravilhosa".

ÉPOCA - Existe alguma semelhança entre os personagens criados pelos internautas e os da literatura?
Maingueneau - Não diria que os anúncios dos sites de namoro tenham qualidade literária, mas têm relação com a literatura. Quando você escreve um anúncio, atinge muito mais leitores que os escritores profissionais. A literatura não pode mais se limitar às formas publicadas por editoras especializadas. Quando você procura escrever ou falar bem e tenta fazer um espetáculo com a linguagem, já está entrando na literatura. Sobretudo porque, por meio do discurso, você está construindo uma imagem do que quer ser. E escrever literatura é ter a chance de ser alguém diferente.

ÉPOCA - A linguagem escrita é um recurso importante na internet. Isso irá mudar?
Maingueneau - A escrita não tem a mesma importância na internet e nos livros. No livro, o texto escrito é só escrito. São páginas brancas, normalizadas e monótonas. No caso da internet, o que chamamos de texto é já uma imagem. O texto é uma encruzilhada de textos – você está sempre clicando. Estamos mais na função de um manipulador ou operador do que na posição do leitor. A experiência mostra que no futuro haverá uma superposição de várias camadas de texto e vídeo.

ÉPOCA - No papel de “Zerbinet”, seu pseudônimo na rede, o senhor recebeu alguma cantada?
Maingueneau - Sim, é inevitável! Recebi vários “flashs”, que são um sinal de que alguém está interessado em você. Recebi mensagens também, mas obviamente nunca as respondi.

Fonte: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI8846-15228-2,00-NA+INTERNET+HOMENS+SE+VENDEM+COMO+CARROS.html

Linguagem rebuscada

 
Faulkner e os cardápios polifônicos
 
Fabrício Corsaletti (FSP 5/05/2013)
 
Sem falsa modéstia: estou longe de ser a pessoa mais inteligente que conheço. Mas também não estou entre as mais estúpidas. Por exemplo, eu leio Faulkner (1897-1962), um escritor considerado difícil. Leio e entendo, quase sempre, o que ele diz. Ler Faulkner me dá a certeza de que meu cérebro funciona. De que minha percepção da realidade pode se aprimorar e ganhar mais consistência.
Num sábado desses passei o dia lendo "O Som e a Fúria", uma das suas obras-primas. Li as primeiras 70 páginas, cujo narrador é um deficiente mental. Acho que foi das experiências mais trabalhosas e intensas que tive como leitor. Fechei o livro com a sensação de que um ciclope tinha me atirado cem vezes contra uma cerca de arame farpado, como num pesadelo de que não se consegue despertar.
De noite saí pra jantar com a minha namorada. Fomos a um restaurante novo no Itaim, com decoração minimalista em vermelho e amarelo e garçons de bigodes retorcidos. Me acomodei na poltrona alaranjada e, morto de fome, li o cardápio. E, juro, tive dificuldade pra atinar com o significado de descrições como "vitela polvilhada em talos de aipo genovês sob cama de cebolas húngaras entrelaçadas com fios de 'baby cranberry al dente'".

O prato poderia se chamar "malabarismo verbal", "parnasianismo pós-moderno", "a volta dos adjetivos (uma homenagem a Victor Hugo)", mas tinha sido batizado de "nice vitela", o que me deixou ainda mais confuso: seria uma variação de algum prato de Nice, a cidade francesa, ou uma vitela norte-americana e legal? Pedi ajuda pra minha namorada, mas ela também estava atônita. Acabei escolhendo uma sopa que, surpresa, não era líquida e parecia um sanduíche de carne louca multicor. Sou um sujeito aberto pro inesperado. Comi a sopa (que frase!) e fui mais ou menos feliz.
A cerveja ainda não tinha chegado quando dei a última mordida. Minutos depois, foi despejada como uma cachoeira em cima da minha perna. O garçom de cavanhaque surrealista fingiu que nada tinha acontecido. Peguei o guardanapo e tratei de me enxugar. Aí ele deu um risinho cínico e disse:
- Não se preocupe, não foi nada.
Essa fala era minha, certo? Ou será que agora eu tinha que pedir desculpas a ele? Já fui garçom, me formei numa faculdade onde boa parte dos professores eram marxistas e há 13 anos faço análise. Respirei fundo e, em vez de mandar o cara pra onde ele merecia, implorei pela conta e saímos. Na calçada, cinco dos sete garçons "hipsters" tomavam cerveja e fumavam. Talvez isso tivesse alguma relação com o atraso dos pedidos, mas vai saber.
O fato é que voltei pra casa menosprezando Faulkner. Sua visão de mundo era estreita comparada à complexidade da vida paulistana atual, e sua linguagem, em termos de sofisticação, não chegava aos pés da utilizada nos cardápios polifônicos. Imaginei como ele se sairia em São Paulo, se uma máquina do tempo o ressuscitasse e o abandonasse aqui, e concluí que seria esnobado feito porco em churrasco de judeu.
No domingo recobrei a lucidez. E decidi ficar em casa. Lendo Faulkner, claro.