Faulkner e os cardápios polifônicos
Fabrício Corsaletti (FSP 5/05/2013)
Sem falsa modéstia: estou longe de ser a pessoa mais inteligente que conheço.
Mas também não estou entre as mais estúpidas. Por exemplo, eu leio Faulkner
(1897-1962), um escritor considerado difícil. Leio e entendo, quase sempre, o
que ele diz. Ler Faulkner me dá a certeza de que meu cérebro funciona. De que
minha percepção da realidade pode se aprimorar e ganhar mais consistência.
Num sábado desses passei o dia lendo "O Som e a Fúria", uma das suas
obras-primas. Li as primeiras 70 páginas, cujo narrador é um deficiente mental.
Acho que foi das experiências mais trabalhosas e intensas que tive como leitor.
Fechei o livro com a sensação de que um ciclope tinha me atirado cem vezes
contra uma cerca de arame farpado, como num pesadelo de que não se consegue
despertar.
De noite saí pra jantar com a minha namorada. Fomos a um restaurante novo no
Itaim, com decoração minimalista em vermelho e amarelo e garçons de bigodes
retorcidos. Me acomodei na poltrona alaranjada e, morto de fome, li o cardápio.
E, juro, tive dificuldade pra atinar com o significado de descrições como
"vitela polvilhada em talos de aipo genovês sob cama de cebolas húngaras
entrelaçadas com fios de 'baby cranberry al dente'".
O prato poderia se chamar "malabarismo verbal", "parnasianismo pós-moderno",
"a volta dos adjetivos (uma homenagem a Victor Hugo)", mas tinha sido batizado
de "nice vitela", o que me deixou ainda mais confuso: seria uma variação de
algum prato de Nice, a cidade francesa, ou uma vitela norte-americana e legal?
Pedi ajuda pra minha namorada, mas ela também estava atônita. Acabei escolhendo
uma sopa que, surpresa, não era líquida e parecia um sanduíche de carne louca
multicor. Sou um sujeito aberto pro inesperado. Comi a sopa (que frase!) e fui
mais ou menos feliz.
A cerveja ainda não tinha chegado quando dei a última mordida. Minutos
depois, foi despejada como uma cachoeira em cima da minha perna. O garçom de
cavanhaque surrealista fingiu que nada tinha acontecido. Peguei o guardanapo e
tratei de me enxugar. Aí ele deu um risinho cínico e disse:
- Não se preocupe, não foi nada.
Essa fala era minha, certo? Ou será que agora eu tinha que pedir desculpas a
ele? Já fui garçom, me formei numa faculdade onde boa parte dos professores eram
marxistas e há 13 anos faço análise. Respirei fundo e, em vez de mandar o cara
pra onde ele merecia, implorei pela conta e saímos. Na calçada, cinco dos sete
garçons "hipsters" tomavam cerveja e fumavam. Talvez isso tivesse alguma relação
com o atraso dos pedidos, mas vai saber.
O fato é que voltei pra casa menosprezando Faulkner. Sua visão de mundo era
estreita comparada à complexidade da vida paulistana atual, e sua linguagem, em
termos de sofisticação, não chegava aos pés da utilizada nos cardápios
polifônicos. Imaginei como ele se sairia em São Paulo, se uma máquina do tempo o
ressuscitasse e o abandonasse aqui, e concluí que seria esnobado feito porco em
churrasco de judeu.
No domingo recobrei a lucidez. E decidi ficar em casa. Lendo Faulkner, claro.
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