quarta-feira, 3 de outubro de 2012

GERÚNDIO x Gerundismo

RICARDO FREIRE
A luta vai estar continuando
Foi, provavelmente, a primeira vez que você me leu. Algum amigo mandou para sua caixa postal eletrônica um texto que começava assim:
'Este artigo foi feito especialmente para que você possa estar recortando e possa estar deixando discretamente sobre a mesa de alguém que não consiga estar falando sem estar espalhando essa praga terrível da comunicação moderna, o futuro do gerúndio'.
Naquele tempo, nem todo mundo ainda tinha se dado conta de que o português do Brasil estava sendo contaminado por um tempo verbal esdrúxulo, contrabandeado por más traduções de livros de marketing. A situação era grave. Se nada fosse feito, em breve aquilo seria consi- derado correto e incorporado à gramática brasuca.
Tratava-se de uma campanha educativa: 'Mais do que estar repreendendo ou estar caçoando, o objetivo deste movimento é estar fazendo com que esteja caindo a ficha nas pessoas que costumam estar falando desse jeito sem estar percebendo'.
Em tom de manifesto, eu continuava: 'Nós temos de estar nos unindo para estar mostrando a nossos interlocutores que, sim!, pode estar existindo uma maneira de estar aprendendo a estar parando de estar falando desse jeito'.
No fim do mês passado, esse texto fez cinco anos - o que significa que estamos já há meia década em guerra contra o terrível gerundismo. Será que temos algo a comemorar?
Acredito que sim. Pelo que sei, muitos bancos e operadoras de telemarketing - os próprios laboratórios de onde essa doença escapou para as ruas - empenharam-se em campanhas para erradicar o gerundismo de seu ambiente (em alguns casos, usando até aquele texto como apostila).
Hoje, o gerundismo deixou de ser uma conspiração de grandes empresas contra nossos ouvidos e tornou-se um vício de caráter privado, como o cigarro, o álcool ou o bingo. Ainda não existem clínicas de reabilitação para gerundistas, mas é só uma questão de tempo. Só quem já se viu dominado sabe quanto é difícil largar o gerundismo. Às vezes, o 'eu vou estar transferindo a sua ligação' é mais forte que você.

Felizmente, o pior não aconteceu. Se nada tivesse sido feito há cinco anos, a que ponto teríamos chegado? Não custa nada imaginar.
A esta altura, o gerundismo já teria escapulido das relações de compra e venda e invadido outros territórios, como o dos ditados. De 'ter é poder' para 'estar tendo é estar podendo' é um pulo. O último que vai estar chegando é a mulher do padre. É estar pegando ou estar largando!
As crianças, graças aos céus, continuam imunes. Ainda não se canta 'Ciranda, cirandinha, vamos todos estar cirandando'. Pais e padrinhos não perguntam 'O que você vai estar sendo quando vá estar crescendo?'. Garotos brigões não ameaçam 'Eu vou tá te pegando na saída!'.


Ilustração: Fido Nesti
A poesia permanece a salvo do gerundismo. Dificilmente nosso próximo Vinícius escreverá 'Eu sei que vou estar te amando/Por toda a minha vida vou estar te amando'. Outra: os títulos dos livros continuam intactos. Ainda não soltaram nenhuma edição de 'A insustentável leveza do estar sendo'.
Enquanto o gerundismo permanecer fora dos estádios de futebol - e o 'Vamuláááá!' não se transformar em 'Vamotaindolááááá!' -, saberemos que a situação está sob controle, e o gerundismo um dia passará, como um 'a nível de' qualquer.
De todo modo, vencemos algumas batalhas, mas a guerra ainda não está ganha. O lema do movimento continua o mesmo: não vamos estar nos dispersando!
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR73498-6016,00.html

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