Muita gente torce o nariz quando um chatola, como eu, começa a reclamar dos erros de português que se cometem nos jornais e na televisão. Desses, muitos dos que os cometem são profissionais, mas estão pouco ligando para o que consideramos escrever e falar errado.
Sabe-se que, para a maioria dos linguistas,
não existe isso de falar errado: todo o mundo fala certo. Admitem existir uma
"norma culta", que obedece às regras gramaticais, mas violá-las não é
propriamente errar. Ouvi de um deles que está tão certo dizer "pobrema" como
"problema". Obtuso como sou, tenho dificuldade de entender por que eles mesmos
vivem escrevendo livros e colunas em jornais, ensinando como se deve escrever.
Ora, se não existe falar errado, por que ensinar?
Não deve o leitor concluir daí que sou
aquele morrinha que vive catando os deslizes de cada um, mesmo porque não posso
me considerar um grande conhecedor da língua. Gosto dela, prezo-a ou, melhor
dizendo, considero-a uma das extraordinárias criações do gênio humano. Não é
maravilhoso imaginar que, muito antes de surgirem os gramáticos, nossos
ancestrais já falavam obedecendo às normas que tornaram o idioma meio de
comunicação entre as pessoas e de invenção do nosso mundo cultural?
Pense bem nesta maravilha: a palavra "este"
indica algo que está perto de mim; "esse", o que está perto de você; e "aquele",
o que está longe de nós dois. Eis a linguagem expressando as relações reais do
sujeito e das coisas do mundo. Não obstante, todos os locutores de rádio e
televisão, como a maioria dos jornalistas, referindo-se ao que está perto de si,
usam "esse" em lugar de "este". E isso é hoje tão frequente que já nem se
repara.
Ninguém vai morrer por isso, mas não deixa
de ser preocupante observar as pessoas deformarem e empobrecerem a língua,
usando, por exemplo, "sobre" como regência de quase todos os verbos.
Em vez de "comentou os fatos" dizem
"comentou sobre os fatos"; em vez de "quando falou do problema", dizem "quando
falou sobre o problema"; em vez de "alertado do ataque", dizem "alertado sobre o
ataque", e por aí vão.
Em certas frases, o uso de "sobre" chega ao
limite do desatino: "o deputado aguarda o desmentido sobre a denúncia", quando
seria muito mais simples e elegante dizer "aguarda o desmentido da denúncia". Vá
você, agora, explicar como surgiu essa mania do sobre, que espero seja apenas
uma mania, como outras que surgiram e se foram.
Lembram-se da época em que todos usavam a
expressão "a nível de"? Servia para qualquer coisa, como ouvi um entrevistado
afirmar que, "a nível de ração para porcos, o melhor seria...". Felizmente, essa
mania passou, o que me faz crer que a língua termina por excluir de si as
excrescências que nela se introduzem. Mas parece que nem sempre, porque, às
vezes, o mau uso se generaliza e até mesmo se oficializa.
Existe coisa mais descabida do que chamar de
"sambódromo" uma passarela para desfile de escolas de samba? Em grego, "-dromo"
quer dizer "ação de correr, lugar de corrida", daí as palavras autódromo e
hipódromo. É certo que, às vezes, durante o desfile, a escola se atrasa e é
obrigada a correr para não perder pontos, mas não se desloca com a velocidade de
um cavalo ou de um carro de Fórmula 1.
Muitas vezes, à irreverência junta-se a
ignorância, a pouca leitura dos bons escritores. Não é que tenhamos de escrever
como escrevia Camões, mas o conhecimento do idioma, em seus diferentes momentos
históricos e em suas mudanças, ajuda-nos a preservar a língua no que tem de
essencial como também a transformá-la sem lhe trair a natureza. É essa
ignorância que leva alguns redatores de televisão a substituir "risco de vida"
por "risco de morte", achando que esta é a expressão correta. Ganha-se em
obviedade e perde-se em elegância.
Já mencionei aqui, noutra ocasião, a tal lei
da termodinâmica, segundo a qual os sistemas tendem à desordem. Sendo a língua
um sistema, está sujeita a desorganizar-se, como o atestam os exemplos citados,
tanto mais hoje em dia, quando a TV induz milhões de pessoas a falar errado.
Essa mesma TV que poderia se tornar um instrumento decisivo na luta contra a
entropia. Ou será que escrever certo é elitismo?
Ferreira Gullar, artigo publicado na
Folha Ilustrada, do Jornal Folha de São Paulo, de 20 de junho de
2010
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