Nas ocasiões propícias, gosto de brincar com uma frase que já não sei se adaptei ou se li emalgum lugar:
— Coitado de mim se não fosse eu.
Quais ocasiões propícias? Aquelas em que, na boa, fazemos sozinhos
alguma coisa que poderia ser feita com a ajuda de alguém que está perto e
não se mexe.
A frase contém um poucode absurdo e de cômico. Absurdo porque a pessoa
se destaca de si e se avalia como imprescindível para si mesma, é o
inseparável a se observar de outra perspectiva. Cômico porque tem aquilo
que o filósofo Henri Bergson apontou como uma das motivações do riso: o
tropeção inesperado. A sentença de reconhecimento “coitado de mim se
não fosse você” leva um tropeção.
Uma das mais famosas do gênero “eu como paisagem” pode nem ser
verdadeira. Conta-se que o jovem rei Luís XIV da França saiu de uma
caçada para peitar o Parlamento, que ousara questionar um édito seu, e
ouviu do presidente da casa que o fizeram pelo bem do estado. O rei
teria respondido, do alto dos seus 17 anos: “O estado sou eu”.
Dois grupos brasileiros de rock dos anos 80 escancararam o amor
narcisista de uma geração. Roger, do Ultraje a Rigor, bradava “Eu me
amo, eu me amo / não posso mais viver sem mim”. E a música Egotrip,
da Blitz, dizia: “Eu te amo, eu me adoro, / eu não consigo te ver sem
mim” e justificava: “Eu sou o cara mais gente fina que eu conheço”.
Creio que é também de música essa frase redondinha, mas não consegui
localizar seu autor e circunstâncias: “Que nem eu só tem eu”. Beleza de
concisão egoísta.
Gosto de frases que dão aquela quebrada, ginga de corpo, fazem que vão
para um lado e viram para o outro. A que se segue tem ainda o tempero de
um derrotismo que conta vantagem ao contrário: “Eu sempre venço, quando
não tem outro candidato”. É coisa do Woody Allen. O currículo é um modo
de se ver, e tem gente que só aí é perfeita.
Freud estudou os lapsos da nossa fala e publicou um ensaio divertido sobre eles, Psicopatologia da Vida Cotidiana.
Lá se encaixaria certamente o prazer secreto da sobrevivência aos
outros que se encontra numa fala de Roberto Marinho, lembrada em livro
por sua viúva, Lily Marinho. Dizia ele: “Se um dia eu morrer...”.
O mesmo Freud, enquanto trabalhava com a interpretação dos sonhos,
analisando um sonho que ele próprio tivera, lembrou-se da história de um
marido que diz para a esposa: “Se um de nós morrer, eu me mudo para
Paris”. São formas do eu como paisagem.
Tem gente que não atravessa uma conversa sem meia dúzia de “eu, por
exemplo”. E aquelas pessoas que têm sempre um caso pessoal melhor do que
o caso que acabamos de contar? Acham-se invariavelmente personagens das
melhores histórias, conhecem pessoas mais esquisitas do que as que
conhecemos, e muitas vezes nos interrompem antes mesmo de terminarmos,
para dizer “não, pior mesmo foi o que me aconteceu”, ou coisas
parecidas. Não vou escrever sobre isso porque Humberto Werneck já pintou
o retrato desse pessoal em uma crônica saborosa em O Estado de S.Paulo.
Não vale colocar no mesmo balaio os poetas e os filósofos, que partem
do eu para meditar sobre o mundo. O egocentrismo que nos distrai no
momento não nos leva a mergulhos profundos, seguimos com água pelas
canelas. Políticos, por exemplo, não têm outra perspectiva senão o eu,
enquanto falam em povo e sociedade; quando são líderes, transformam seu
partido em extensão de si mesmos. O ponto de vista do adversário é
sempre visto como deformação e falsidade. Vejam que preciosa a frase do
político americano Adlai Stevenson: “Se meus inimigos parassem de dizer
mentiras a meu respeito, eu pararia de dizer verdades a respeito deles”.
Outra preciosidade, com a qual encerro, vem do humorista americano
Ambrose Bierce: “Egoísta é um sujeito mais interessado nele mesmo do que
em mim”.
e-mail: ivan@abril.com
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O eu como paisagem