quarta-feira, 3 de abril de 2013

INTERTEXTUALIDADE e apropriação

"Todo tipo de apropriação é possível"
RENATO ROSCHEL
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O escritor argentino Jorge Luis Borges, fascinado pelo "Livro das Mil e Uma Noites", chegava a dizer que, quanto mais edições falsas do livro fossem escritas, mais ele se tornaria interessante.
Na entrevista a seguir, Mamede Mustafa Jarouche, professor de letras na USP, fala sobre a tradição de "traições" a que o livro foi submetido e sobre sua nova tradução da obra, a primeira no país a ser feita, na íntegra, diretamente dos manuscritos árabes.
 
Folha - Aristóteles difere o verdadeiro do verossímil com a frase: "O historiador diz o que aconteceu; o poeta, o que poderia ter acontecido". O "Livro das Mil e Uma Noites" é um livro de poeta ou de historiador?
Mamede Jarouche -
Dos dois. Shahrazád é poeta no duplo sentido: de retomar tanto o discurso do poeta e retrabalhá-lo como no sentido de pegar o discurso do historiador, daquilo que aconteceu, e transformar naquilo que poderia ter acontecido, reformulando o discurso histórico.
Folha - Existe um estereótipo sobre as "Mil e Uma Noites" que chega a caracterizá-lo como literatura infantil.
Jarouche -
Eu diria que caracterizar o livro como literatura infantil é uma das piores e mais ridículas formas de infantilidade intelectual que você pode encontrar. Na verdade, a literatura infantil é uma invenção muito recente. Ela não existe no século 13, que é o período que a gente pode pensar como de elaboração do livro. Na verdade, creio que, operando silenciosamente por trás dessa categorização, há uma espécie de elogio.
Folha - E qual seria?
Jarouche -
À qualidade narrativa do texto. O livro possui uma qualidade narrativa tal que ele se presta a todo tipo de apropriação, e é por isso que é tão rico.
Folha - O que você teria a dizer sobre a tradução de Antoine Galland, que é considerada a mais famosa?
Jarouche -
Sim, e é a mais antiga também. É a primeira tradução do livro para uma língua ocidental. Ela tem o seu mérito porque foi um trabalho que popularizou o livro. Talvez estejamos falando hoje do livro por causa do trabalho pioneiro do Galland. Ele pode ser considerado um clássico da literatura francesa.
Temos que levar em conta que Galland traduziu esse texto no começo do século 18. Não havia dicionários, não havia trabalhos de filologia a respeito, não havia quase nada.
Do ponto de vista técnico, o que o Galland fez já não pode ser considerado uma tradução. Seja porque não entendeu muitas partes do livro, seja porque não dispunha de muitas partes do livro, isto é, o único manuscrito que tinha estava truncado em algumas passagens. Já antes do manuscrito terminar, ele, por exemplo, traduzia algumas partes e daí se cansava. Então passava a traduzir de um outro lugar (outro texto) ou então inventava outra história.
Folha - Essas mirabolantes histórias dos caminhos percorridos pelas traduções chamavam muito a atenção de Borges, a ponto de ele também praticar esse tipo de invenção. Você acha que podemos falar que talvez o fantástico que aparece na literatura latino-americana tenha algum parentesco com as "Mil e Uma Noites"?
Jarouche -
É possível, sem dúvida nenhuma que é possível. Claro que há outras vertentes, mas acredito que as "Mil e Uma Noites" têm uma importância muito grande na construção do imaginário literário ocidental. Quanto às falsificações do Borges, há uma que é muito curiosa.
O escritor Milton Hatoum me chamou a atenção para o fato de que Borges escreve, num texto que agora eu não me lembro exatamente qual é, o seguinte: "Não é estranho que exatamente na noite 682, por uma mágica distração do copista, Shahrazád conte para o rei Shaaria a sua própria história?".
E Italo Calvino foi ainda mais longe, vendo aí um jogo de espelhos que muito agradava ao Borges, ou seja, Shahrazád conta pra Shahriyár uma história na qual Shahrazád conta para Shahriyár uma história na qual Shahrazád conta para Shahriyár uma história... E Milton havia me dito que em nenhuma tradução que ele consultou tinha, na noite 682, essas coisas. Eu fui ver nas minhas edições árabes, e também não havia.
Quando fui fazer meu pós-doutorado no Cairo, no Egito, um amigo me avisou que a edição de Breslau, uma edição em árabe feita na Alemanha por Maximiliano Habicht, um arabista alemão do começo do século 19, tinha isso. Esse sujeito, Habicht, alegou editar um manuscrito tunisiano das "Mil e Uma Noites". Depois disso a crítica, mais especificamente Duncan McDonald, um arabista inglês, mostrou que tudo era mentira, pois não existia nenhum manuscrito tunisiano das "Mil e Uma Noites". Lá no Cairo descobri uma edição fac-similar dessa edição de Breslau e a comprei.
Ao folheá-la, no último volume, exatamente na noite 999, eis que encontro Shahrazád contando para Shahriyár a sua própria história. Só que ela não tem o sabor da imaginação do Italo Calvino e do Borges. Mas fiquei assombrado porque eu não pude confirmar se o Duncan McDonald, nas resenhas que fez a respeito dessa edição falsa, falou, em algum momento, desse jogo de espelhos. Porque, se ele citou, é possível que o Borges tenha lido isso em algum lugar, mas se não, alguém pode ter dito isso para o Borges. E, se ninguém disse, isso é uma coisa absolutamente assombrosa de Borges. Como se diz nas "Mil e Uma Noites", esse é o "espanto dos espantos".

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