terça-feira, 2 de abril de 2013

VOCÁBULOS

20/02/2003

Outras palavras

 
Que me perdoem os entusiastas do politicamente correto, mas não dá para tentar reinventar a língua que falamos. Abordo a questão do idioma provocado pela bronca que recebi de vários leitores por ter utilizado, na coluna da semana retrasada, o gentílico "americanos" para referir-me aos cidadãos dos EUA.
Em termos técnicos, a reprimenda é merecida. Nos dicionários, "americano" designa aquele ou aquilo que pertence ou se refere a América, o que, até prova em contrário, inclui a América do Norte, Central, do Sul é até os Américas, os vários clubes de futebol com esse nome espalhados pelo Brasil. Chamar um cidadão dos EUA de americano seria um gesto de submissão ao imperialismo ianque. Equivaleria a deixar George W. Bush apropriar-se de todo o continente (e dos grêmios futebolísticos, eu acrescentaria).
Tentei explicar a esses leitores zelosos para com seu quinhão da América que eu conhecia a objeção, mas não a acatava. Língua é um organismo vivo, moldado pelo uso e não pela lógica cartesiana ou por "pedigrees" que atestem a lisura da origem de seus termos. É extremamente raro ver um brasileiro ou uruguaio referindo-se a si mesmo como "americano". Já os habitantes dos EUA o fazem constantemente. Não vejo razão para vetar-lhes o direito de usar a palavra _ o que equivaleria a excluí-los da América. Se um brasileiro ou uruguaio também quiser empregar o adjetivo, poderá perfeitamente fazê-lo. O contexto muito provavelmente se encarregará de tornar a comunicação precisa e efetiva.
Tentei também ponderar que, quando tomamos o idioma como uma operação aritmética, não existem alternativas "perfeitas" para "americano". Se usamos "norte-americano", os compatriotas de Bush estão usurpando os direitos gentílicos de canadenses e mexicanos. Se tentamos o improvável "estadunidense", são os mexicanos que como quase sempre perdem de novo. É o que o México, a exemplo do que ocorria com o Brasil até 1988, chama-se oficialmente Estados Unidos do México. Língua não é matemática.
Quando critico a turma do idiomaticamente correto não estou sugerindo que a sensibilidade do falante não seja importante. Ela é. E muito. Só que, a exemplo do que se passa com a história, estamos aqui lidando com processos complexos, imprevisíveis e, no fundo, sem direção. Não seria factível nem desejável "limpar" o idioma de todas as injustiças sociais, incorreções geográficas e iniquidades étnicas que formam seu substrato. Fazê-lo seria trabalhar contra a história. "Mutatis mutandis", agiríamos como o ministro Rui Barbosa, que, num decreto de 1890, determinou a destruição de todos os "papéis, livros e documentos" relativos à escravidão, "por honra da pátria, e em homenagem aos nossos deveres de fraternidade e solidariedade para com a grande massa de cidadãos que pela abolição do elemento servil entraram na comunhão brasileira". (Na verdade, a Águia de Haia baixou o decreto para evitar futuros pedidos de indenização. Felizmente, grande parte dos detentores de dados ignorou a ordem oficial).
No fundo, línguas são verdadeiros catálogos de preconceitos, que podem nem ser os nossos, mas herdados de outros povos. Com o passar do tempo, já nem os reconhecemos como tais, mas as palavras em que resultaram enriquecem e dão caráter histórico ao idioma.
Para o termo "beócio", o dicionário Aurélio registra: "curto de inteligência; ignorante, boçal". Se olharmos para a etimologia, descobriremos estamos diante de um imemorial preconceito das elites gregas, para as quais os habitantes da província da Beócia os beócios não passavam de camponeses estúpidos e glutões. O sentido de glutonaria se perdeu, mas o de estupidez se manteve em várias línguas modernas.
Obviamente, não eram apenas os gregos os arrogantes e intolerantes. Os judeus do século 12 a.C. também tinham seus desafetos, mais especificamente os filisteus, com quem viviam guerreando. Foi assim que, em hebraico, "pelishti" ganhou conotações pouco abonadoras, mais ou menos o mesmo que "beócio" significava para os gregos cultos. E convém lembrar que os filisteus são em tese os ancestrais dos modernos palestinos, com quem os judeus continuam a guerrear.
Outro grupo vítima de preconceito este talvez parcialmente justificado é o dos vândalos. Representantes dessa tribo germânica, depois de se estabelecer em partes da Europa e no norte da África, invadiram Roma em 455. Lá permaneceram por duas semanas e depois se retiraram, como era comum na época, levando todos os despojos em que puderam meter as mãos, mesmo que isso significasse demolir um ou outro monumento. Ficaram para todo o sempre com a fama de destruidores.
Seus primos mais do sul, os francos, tiveram melhor sorte. Cruzaram o Reno e fincaram o pé no que é hoje a França, dominando os povos célticos da região. Como quem vence sempre tem razão, "franco" designa, em vários idiomas modernos "espontâneo, sincero, leal, desimpedido, livre, generoso". A diferença entre os vândalos e os francos é que os primeiros se retiraram em pouco tempo, enquanto os segundos permaneceram para impor as suas lei e visão de mundo.
Às vezes acontece de o preconceito funcionar às avessas. É o caso da palavra "cretino". Como todo mundo sabe, a deficiência de iodo na dieta durante a gestação pode levar ao surgimento do hipotireoidismo congênito, cujas manifestações clínicas incluem retardo mental, surdez, rigidez motora. Em regiões montanhosas, como a Suíça, são pobres as fontes de iodo ambiental. Assim, durante muito tempo, o hipotireoidismo congênito (ou cretinismo) teve um padrão endêmico na Suíça. Como os bons helvéticos já eram politicamente corretos "avant la lettre", recusavam-se a chamar as crianças afetadas pela síndrome pelo nome de "idiotas". No século 18, passaram a usar o mais piedoso termo "cristão", que soava "crétin" no francês dialetal ali falado. Acabaram inventando, sem querer, a palavra "cretino", hoje de alcance mundial e politicamente incorreta.
Fiz essa longa digressão etimológica para tentar mostrar que idiomas como tudo que é espontâneo, vivo possuem uma dinâmica que não controlamos. É quase incrível que o português, uma língua que surgiu na passagem do século 12 d.C. para o 13 d.C, ainda carregue preconceitos que os judeus exprimiam no século 12 a.C. E mesmo quando se tenta, como os suíços, corrigir os casos mais gritantes de discriminação linguística, o tiro pode sair pela culatra. É por isso que fico com o meu "americanos". (Aliás, nunca entendi porque Américo Vespuccio, que chegou à América bem depois de Colombo, acabou dando nome a todo o continente enquanto seu antecessor teve de contentar-se com a Colômbia).
É possível que, dentro de alguns séculos, "americano" seja apenas um sinônimo raro de "arrogante", mas não podemos descartar a hipótese de que passe a designar "senhor do mundo e do universo". O que eu sei é que, hoje, para a imensa maioria do mundo, o termo serve para indicar os cidadãos dos EUA. É o que basta se consideramos que a tarefa precípua da língua é permitir a comunicação entre pessoas.
Por mais que Hegel e Marx pensassem o contrário, nós não controlamos os rumos da história. Na verdade, nem sabemos bem para onde ela caminha. Se formos exigir pureza e neutralidade de todas as palavras que utilizamos, só o que conseguiremos é eliminar uma boa fatia dos vocábulos, empobrecendo os idiomas. Já os preconceitos, estes, lamentavelmente, continuarão existindo, só que em outras palavras.

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