20/02/2003
Outras palavras
Que me perdoem os entusiastas do politicamente correto, mas não dá para
tentar reinventar a língua que falamos. Abordo a questão do idioma provocado
pela bronca que recebi de vários leitores por ter utilizado, na coluna da semana
retrasada, o gentílico "americanos" para referir-me aos cidadãos dos EUA.
Em termos técnicos, a reprimenda é merecida. Nos dicionários, "americano"
designa aquele ou aquilo que pertence ou se refere a América, o que, até prova
em contrário, inclui a América do Norte, Central, do Sul é até os Américas, os
vários clubes de futebol com esse nome espalhados pelo Brasil. Chamar um cidadão
dos EUA de americano seria um gesto de submissão ao imperialismo ianque.
Equivaleria a deixar George W. Bush apropriar-se de todo o continente (e dos
grêmios futebolísticos, eu acrescentaria).
Tentei explicar a esses leitores zelosos para com seu quinhão da América que
eu conhecia a objeção, mas não a acatava. Língua é um organismo vivo, moldado
pelo uso e não pela lógica cartesiana ou por "pedigrees" que atestem a lisura da
origem de seus termos. É extremamente raro ver um brasileiro ou uruguaio
referindo-se a si mesmo como "americano". Já os habitantes dos EUA o fazem
constantemente. Não vejo razão para vetar-lhes o direito de usar a palavra _ o
que equivaleria a excluí-los da América. Se um brasileiro ou uruguaio também
quiser empregar o adjetivo, poderá perfeitamente fazê-lo. O contexto muito
provavelmente se encarregará de tornar a comunicação precisa e efetiva.
Tentei também ponderar que, quando tomamos o idioma como uma operação
aritmética, não existem alternativas "perfeitas" para "americano". Se usamos
"norte-americano", os compatriotas de Bush estão usurpando os direitos
gentílicos de canadenses e mexicanos. Se tentamos o improvável "estadunidense",
são os mexicanos que como quase sempre perdem de novo. É o que o México,
a exemplo do que ocorria com o Brasil até 1988, chama-se oficialmente Estados
Unidos do México. Língua não é matemática.
Quando critico a turma do idiomaticamente correto não estou sugerindo que a
sensibilidade do falante não seja importante. Ela é. E muito. Só que, a exemplo
do que se passa com a história, estamos aqui lidando com processos complexos,
imprevisíveis e, no fundo, sem direção. Não seria factível nem desejável
"limpar" o idioma de todas as injustiças sociais, incorreções geográficas e
iniquidades étnicas que formam seu substrato. Fazê-lo seria trabalhar contra a
história. "Mutatis mutandis", agiríamos como o ministro Rui Barbosa, que, num
decreto de 1890, determinou a destruição de todos os "papéis, livros e
documentos" relativos à escravidão, "por honra da pátria, e em homenagem aos
nossos deveres de fraternidade e solidariedade para com a grande massa de
cidadãos que pela abolição do elemento servil entraram na comunhão brasileira".
(Na verdade, a Águia de Haia baixou o decreto para evitar futuros pedidos de
indenização. Felizmente, grande parte dos detentores de dados ignorou a ordem
oficial).
No fundo, línguas são verdadeiros catálogos de preconceitos, que podem nem
ser os nossos, mas herdados de outros povos. Com o passar do tempo, já nem os
reconhecemos como tais, mas as palavras em que resultaram enriquecem e dão
caráter histórico ao idioma.
Para o termo "beócio", o dicionário Aurélio registra: "curto de inteligência;
ignorante, boçal". Se olharmos para a etimologia, descobriremos estamos diante
de um imemorial preconceito das elites gregas, para as quais os habitantes da
província da Beócia os beócios não passavam de camponeses estúpidos e
glutões. O sentido de glutonaria se perdeu, mas o de estupidez se manteve em
várias línguas modernas.
Obviamente, não eram apenas os gregos os arrogantes e intolerantes. Os judeus
do século 12 a.C. também tinham seus desafetos, mais especificamente os
filisteus, com quem viviam guerreando. Foi assim que, em hebraico, "pelishti"
ganhou conotações pouco abonadoras, mais ou menos o mesmo que "beócio"
significava para os gregos cultos. E convém lembrar que os filisteus são em tese
os ancestrais dos modernos palestinos, com quem os judeus continuam a guerrear.
Outro grupo vítima de preconceito este talvez parcialmente justificado
é o dos vândalos. Representantes dessa tribo germânica, depois de se estabelecer
em partes da Europa e no norte da África, invadiram Roma em 455. Lá permaneceram
por duas semanas e depois se retiraram, como era comum na época, levando todos
os despojos em que puderam meter as mãos, mesmo que isso significasse demolir um
ou outro monumento. Ficaram para todo o sempre com a fama de destruidores.
Seus primos mais do sul, os francos, tiveram melhor sorte. Cruzaram o Reno e
fincaram o pé no que é hoje a França, dominando os povos célticos da região.
Como quem vence sempre tem razão, "franco" designa, em vários idiomas modernos
"espontâneo, sincero, leal, desimpedido, livre, generoso". A diferença entre os
vândalos e os francos é que os primeiros se retiraram em pouco tempo, enquanto
os segundos permaneceram para impor as suas lei e visão de mundo.
Às vezes acontece de o preconceito funcionar às avessas. É o caso da palavra
"cretino". Como todo mundo sabe, a deficiência de iodo na dieta durante a
gestação pode levar ao surgimento do hipotireoidismo congênito, cujas
manifestações clínicas incluem retardo mental, surdez, rigidez motora. Em
regiões montanhosas, como a Suíça, são pobres as fontes de iodo ambiental.
Assim, durante muito tempo, o hipotireoidismo congênito (ou cretinismo) teve um
padrão endêmico na Suíça. Como os bons helvéticos já eram politicamente corretos
"avant la lettre", recusavam-se a chamar as crianças afetadas pela síndrome pelo
nome de "idiotas". No século 18, passaram a usar o mais piedoso termo "cristão",
que soava "crétin" no francês dialetal ali falado. Acabaram inventando, sem
querer, a palavra "cretino", hoje de alcance mundial e politicamente incorreta.
Fiz essa longa digressão etimológica para tentar mostrar que idiomas como
tudo que é espontâneo, vivo possuem uma dinâmica que não controlamos. É
quase incrível que o português, uma língua que surgiu na passagem do século 12
d.C. para o 13 d.C, ainda carregue preconceitos que os judeus exprimiam no
século 12 a.C. E mesmo quando se tenta, como os suíços, corrigir os casos mais
gritantes de discriminação linguística, o tiro pode sair pela culatra. É por
isso que fico com o meu "americanos". (Aliás, nunca entendi porque Américo
Vespuccio, que chegou à América bem depois de Colombo, acabou dando nome a todo
o continente enquanto seu antecessor teve de contentar-se com a Colômbia).
É possível que, dentro de alguns séculos, "americano" seja apenas um sinônimo
raro de "arrogante", mas não podemos descartar a hipótese de que passe a
designar "senhor do mundo e do universo". O que eu sei é que, hoje, para a
imensa maioria do mundo, o termo serve para indicar os cidadãos dos EUA. É o que
basta se consideramos que a tarefa precípua da língua é permitir a comunicação
entre pessoas.
Por mais que Hegel e Marx pensassem o contrário, nós não controlamos os rumos
da história. Na verdade, nem sabemos bem para onde ela caminha. Se formos exigir
pureza e neutralidade de todas as palavras que utilizamos, só o que
conseguiremos é eliminar uma boa fatia dos vocábulos, empobrecendo os idiomas.
Já os preconceitos, estes, lamentavelmente, continuarão existindo, só que em
outras palavras.
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