Palavras em fuga
Ivan Angelo |
Quantas vezes isso acontece? Você procura uma palavra e ela se
esconde. Revira almofadas na mente, descerra portas, abre gavetas nos
compartimentos do passado, bate nos bolsos da memória, levanta tapetes, ela
estava bem à vista, ali, ou ali, e não mais a encontra. Palavras brincalhonas,
molecas, brincando de esconde-esconde. Palavras que o evitam, mal-agradecidas,
esquecidas do tempo em que delas você fez bom uso, trabalhando o que elas têm
de mais caro: a precisão e a imprecisão.
Você percebe, no exato momento, que uma palavra está fugindo. No
meio de um assunto, quase chegando a ela, ainda atento a duas ou três palavras
que deveriam vir antes dela, a vê retirar-se, vislumbra sua fuga, persegue-a,
quase a agarra pelos cabelos, ela escapa, você não consegue mais pegá-la,
perdeu-a.
Pode acontecer ao contar uma piada: de repente você não consegue
se lembrar de um detalhe sobre o qual se apóia toda a estrutura da piada e ela
vira um desastre que o amargura; ou acontece ao contar um caso sobre uma pessoa
cujo nome é essencial e ele não vem; ou ao recomendar um livro, e o título se
apaga de repente junto com – oh, céus! – o nome do autor; ou ao encontrar
aquele amigo de cerimônia que você sabe perfeitamente quem é, mas o nome, o
nome, o nome – oh, céus!
Muitas vezes, quando a roda é amiga e acontece uma falha dessas,
você estala os dedos, espera que eles funcionem como a faísca que dá a partida
a um motor; ou como um estimulante: você os estala açulando os neurônios, mas
neurônios não são cachorrinhos nem saltam, ativos, agitando o rabinho. Você
recorre aos amigos da roda, a alguém que talvez estivesse a par daquilo de que
você quer se lembrar, e começa um jogo de palavra puxa palavra, como é que se
chama aquele camarada?, aquele!, e segue atirando dicas que poderiam levar o
amigo a localizar o dado fugidio, mas o cérebro do amigo caminha para um lado e
o seu corre para outro, não, não, não é isso, e você fornece outro dado que
também não funciona, ou só funcionaria no repertório do seu próprio cérebro,
que está em pane momentânea.
Outros assuntos vão entrando na conversa; a palavra desaparecida
deixa de atrair a solidariedade dos amigos; algo menos trabalhoso, ou mais
divertido, ou mais emocionante, ou mais urgente os conquista, e eles vão indo,
e você é deixado só com seu mistério, Sherlock sem Watson.
Você pensa no seu cérebro como um computador com vírus tipo cavalo
de Tróia, que espalhou inimigos por todos os caminhos: trava, não troca a tela,
não abre arquivos, a busca não funciona, você clica, clica, e nada acontece.
Chega um momento em que as pessoas se dispersam e vão para seus
mundos, desfaz-se aquele grupo que reconheceria pessoas e fatos e casos comuns,
e ao se dispersar deixa você com aquela falha de memória, sozinho, aquela
palavra escondida atrás de um muro, desafiando você, ou brincando com você, e
você não consegue se libertar daquela necessidade de lembrar, e o seu dia vira
um labirinto por onde você caminha procurando a palavra.
As pessoas, outras pessoas, conversam com você, parece que está
tudo bem, mas você se distrai na perseguição obsessiva, porque lhe pareceu, no
meio da conversa, que a tal palavra estava ali se avizinhando, ou mesmo passou,
reluzente e irrecuperável, estrela cadente.
Você custa a dormir, acorda de madrugada, sente aquela faísca e lá
está ela, a palavra, inteira, quieta e agora inútil.
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