segunda-feira, 8 de abril de 2013

Livros no purgatório


Livros no purgatório
Ivan Angelo
Nos meus tempos de criança, o purgatório significava a segunda chance. É mais ou menos assim que vejo os livros dos sebos e dos buquinistas. De onde vem essa palavra? Alguém, há mais de meio século, soprou o verbo buquinar nos ouvidos de um poeta e ele fez o Soneto da Buquinagem. As palavras vêm do francês popular, importadas pelos garimpeiros de livros usados: "Buquinemos, amiga, neste sebo", convida Carlos Drummond de Andrade no soneto.
Proliferam as casas de livros usados na cidade. Reparem. Há buquinistas em mais de um ponto da Avenida Paulista, na Praça da República, ao lado da Biblioteca Municipal, nas imediações e até nos corredores de todas as universidades, na frente dos cinemas de arte, nas feiras de bricabraque, na passagem subterrânea da Rua da Consolação acabam de instalar uma galeria inteira de livros usados, sebos multiplicaram-se no começo da Avenida Pedroso de Morais, pipocam em ruas de bairros, em Perdizes, no Sumaré, na Vila Madalena, na Pompéia, em Pinheiros, na Rua Augusta, Avenida São João, Rua das Palmeiras, sem falar daqueles gigantescos do centro.
No mercado de usados, livros são diferentes de carros, roupas, móveis ou eletrodomésticos. Ninguém se desfaz de livros porque não estão funcionando bem ou porque saiu um modelo de linhas mais modernas. Estão lá por desamor, ou por ser parte indesejada de um espólio, ou já por falta de serventia, decepção, economia de espaço. De certa forma, foram eles que se livraram de quem não os queria.
Nas estantes empoeiradas, vivem a dualidade: desprezados e procurados. Alguém achou melhor abandoná-los por uns trocados, outro alguém irá encontrá-los por acaso ou busca. E o preço? Livros novos têm o preço dos negócios, dos royalties, do papel, das tecnologias de impressão, do marketing, da distribuição, dos juros. Os livros velhos deixam para trás tudo isso, ficam só com seu conteúdo e raridade, em franciscana simplicidade.
O estarem ali nada tem a ver com o não serem bons. Autores clássicos como Cervantes andam por lá, e no Dom Quixote pode-se ler: "Não há livro tão mau que não tenha algo de bom". A mesma opinião, quase com as mesmas palavras, tem outro clássico presente nos sebos, Plínio, o Velho, do século I: "Nenhum livro é tão ruim que não tenha alguma utilidade". Os sebos e as bibliotecas não deixam que eles se percam. Para alguém hão de servir.
E não estão lá porque não tiveram boa venda no seu tempo. Nada disso. Convivem os best-sellers, já sem arrogância, com os modestos. A cultura tem lucrado mais com os livros que deram prejuízo aos editores (gostaria que a frase anterior fosse minha. Não é. Tê-la citado sem aspas foi um truque para mostrar como valem até hoje as palavras do bem-humorado pregador inglês Thomas Fuller, morto em 1661).
Corria a primeira metade do século XIX quando Honoré de Balzac disse: "É extremamente raro que um livro seja comprado pelo valor que tem, quase sempre ele é publicado por razões alheias a seu mérito". No sebo, essas contas se acertam. Um século antes, o inglês Samuel Johnson argumentava que a maneira de difundir uma obra era vendê-la a preço baixo. Quem sabe a proliferação dos sebos nesta época de dinheiro difícil está ligada à pechincha, já que no fundo é disso que se trata? Em livrarias não se pechincha.
Uma coisa é certa: que seria das casas de livros velhos se não fossem as casas de livros novos, de onde eles sairão para cumprir seu destino de amor e desamor, encontros e desencontros?
Fonte: REVISTA VEJA SP , 2005

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