Livros no purgatório
Ivan Angelo
Nos meus tempos de criança, o purgatório significava a
segunda chance. É mais ou menos assim que vejo os livros dos sebos e dos
buquinistas. De onde vem essa palavra? Alguém, há mais de meio século, soprou o
verbo buquinar nos ouvidos de um poeta e ele fez o Soneto da Buquinagem. As palavras vêm do francês
popular, importadas pelos garimpeiros de livros usados: "Buquinemos,
amiga, neste sebo", convida Carlos Drummond de Andrade no soneto.
Proliferam as casas de
livros usados na cidade. Reparem. Há buquinistas em mais de um ponto da Avenida
Paulista, na Praça da República, ao lado da Biblioteca Municipal, nas
imediações e até nos corredores de todas as universidades, na frente dos
cinemas de arte, nas feiras de bricabraque, na passagem subterrânea da Rua da
Consolação acabam de instalar uma galeria inteira de livros usados, sebos
multiplicaram-se no começo da Avenida Pedroso de Morais, pipocam em ruas de
bairros, em Perdizes, no Sumaré, na Vila Madalena, na Pompéia, em Pinheiros, na
Rua Augusta, Avenida São João, Rua das Palmeiras, sem falar daqueles
gigantescos do centro.
No mercado de usados,
livros são diferentes de carros, roupas, móveis ou eletrodomésticos. Ninguém se
desfaz de livros porque não estão funcionando bem ou porque saiu um modelo de
linhas mais modernas. Estão lá por desamor, ou por ser parte indesejada de um
espólio, ou já por falta de serventia, decepção, economia de espaço. De certa
forma, foram eles que se livraram de quem não os queria.
Nas estantes empoeiradas,
vivem a dualidade: desprezados e procurados. Alguém achou melhor abandoná-los
por uns trocados, outro alguém irá encontrá-los por acaso ou busca. E o preço?
Livros novos têm o preço dos negócios, dos royalties, do papel, das tecnologias
de impressão, do marketing, da distribuição, dos juros. Os livros velhos deixam
para trás tudo isso, ficam só com seu conteúdo e raridade, em franciscana
simplicidade.
O estarem ali nada tem a
ver com o não serem bons. Autores clássicos como Cervantes andam por lá, e no Dom Quixote pode-se ler: "Não há livro
tão mau que não tenha algo de bom". A mesma opinião, quase com as mesmas
palavras, tem outro clássico presente nos sebos, Plínio, o Velho, do século I:
"Nenhum livro é tão ruim que não tenha alguma utilidade". Os sebos e
as bibliotecas não deixam que eles se percam. Para alguém hão de servir.
E não estão lá porque não
tiveram boa venda no seu tempo. Nada disso. Convivem os best-sellers, já sem
arrogância, com os modestos. A cultura tem lucrado mais com os livros que deram
prejuízo aos editores (gostaria que a frase anterior fosse minha. Não é. Tê-la
citado sem aspas foi um truque para mostrar como valem até hoje as palavras do
bem-humorado pregador inglês Thomas Fuller, morto em 1661).
Corria a primeira metade
do século XIX quando Honoré de Balzac disse: "É extremamente raro que um
livro seja comprado pelo valor que tem, quase sempre ele é publicado por razões
alheias a seu mérito". No sebo, essas contas se acertam. Um século antes,
o inglês Samuel Johnson argumentava que a maneira de difundir uma obra era
vendê-la a preço baixo. Quem sabe a proliferação dos sebos nesta época de
dinheiro difícil está ligada à pechincha, já que no fundo é disso que se trata?
Em livrarias não se pechincha.
Uma coisa é certa: que
seria das casas de livros velhos se não fossem as casas de livros novos, de
onde eles sairão para cumprir seu destino de amor e desamor, encontros e
desencontros?
Fonte: REVISTA VEJA SP , 2005
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