terça-feira, 2 de abril de 2013

O poder da palavra


Será lançada a primeira ameaça séria ao reinado do Aurélio. Portentosa obra de catalogação do português falado e escrito no Brasil, o Aurélio pode deixar de ser sinônimo de dicionário. Desde sua primeira edição, há 26 anos, o livrão do professor Aurélio Buarque de Holanda Ferreira vendeu um total de 45 milhões de cópias em suas três versões. Talvez não deixe de ser sinônimo de dicionário. Mas terá de dividir o título com o Houaiss (pronuncia-se uáis), como certamente ficará conhecido pelos brasileiros o novíssimo Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, cujos primeiros exemplares começam a ser vendidos no Rio de Janeiro e em São Paulo a partir desta semana e em todo o país dentro de dez dias. O preço oscilará em torno de 125 reais. O Houaiss levou uma década para ficar pronto e é resultado do trabalho de 140 especialistas brasileiros, portugueses, angolanos e timorenses. A obra é a materialização do sonho de Antônio Houaiss, considerado o maior filólogo do século XX em língua portuguesa, morto em 1999, pouco antes de ver o livro terminado. Diplomata de carreira, Houaiss foi ministro, presidente da Academia Brasileira de Letras e refinado gastrônomo. Mas nada absorveu mais sua existência do que a obsessão de ver publicado o mais completo dicionário da língua portuguesa.
Conseguiu? Em números absolutos, o novo dicionário é imbatível. O Houaiss, com um total de 228.500 verbetes, tem 68.500 a mais que o Aurélio e 28.500 a mais que o Michaelis, o outro competidor. Em Portugal, o recém-lançado dicionário da Academia de Ciências tem 120.000 verbetes. Só o tempo dirá, porém, se o Houaiss será aceito pelo grande público como a fonte primordial da língua viva falada hoje no Brasil - o olimpo que todo grande dicionário almeja. "Por todos os critérios técnicos válidos, o Houaiss é o mais completo e moderno dicionário de português", diz Roberto Feith, dono da editora Objetiva, que publicou a obra e fez dela o seu mais ousado empreendimento. "Para lançar um Paulo Coelho, invisto cerca de 500 000 reais. Para um outro best-seller, ponho 100 000 reais. Com o dicionário Houaiss gastamos 5 milhões de reais", compara Feith. Na semana passada, o editor pôs os olhos pela primeira vez no resultado de sua milionária aposta editorial. Ele foi vistoriar os primeiros dois contêineres com milhares de dicionários, volumes de capa ocre, revestidos de tecido de alta resistência, impermeável, com baixos-relevos, serigrafias e nome de batismo em letras douradas. Os livros acabavam de aportar no Rio de Janeiro, vindos da Itália, onde foram impressos. A Objetiva não encontrou no Brasil quem atendesse às exigências técnicas da obra, especialmente a montagem de 3.008 páginas em um único volume de 3,8 quilos.
"Sem ousarmos nos comparar com o Oxford English Dictionary, com seus 615.000 verbetes, acho que conseguimos chegar aonde outros dicionários de português não conseguiram", diz Mauro Villar, filólogo, sobrinho de Antônio Houaiss, responsável pela conclusão da obra depois da morte do tio. Houaiss levou a equipe a mergulhar nas profundezas do passado e produzir quase uma enciclopédia. Por isso o Houaiss é tão mais volumoso que os concorrentes. Mas atenção. Nem o Houaiss pode se gabar de ter abraçado todas as palavras do idioma. Os dicionaristas orgulham-se de transformar em verbetes palavras que atendem a dois requisitos: estão vivas e são matrizes do idioma. Ou seja, delas derivam outras. Quando se somam aos verbetes as palavras compostas e os termos técnicos, não há obra que dê conta de catalogar todo o universo da língua. Quem chegou mais longe foi o Dicionário Filológico da Academia Brasileira de Letras, que registra 360.000 palavras. "Qualquer língua moderna conta com milhões de palavras potencialmente dicionarizáveis. Calcula-se que a medicina contribua com cerca de 600.000 acepções, a química e a farmacologia, com 2 milhões, apenas superados pela zoologia. Só a classificação dos insetos exige 2 milhões de termos", explica Villar.
Como todo dicionário com forte acento enciclopédico e histórico, o Houaiss oferece, ao mais superficial manuseio, um delicioso passeio pela linhagem evolucionária das palavras. Os vocábulos, como as pessoas, podem ser promovidos ou rebaixados. Tome-se o exemplo do que foi legado às gerações posteriores pelo militar aventureiro alemão Friederich Hermann Schönberg, que nos idos de 1615 comandava tropas portuguesas contra os espanhóis e ditava a moda na corte. Ele não viveu o bastante para ver seu pomposo sobrenome acabar rolando nobreza abaixo. Em Lisboa, de Schönberg para "chumbergas" foi um pulo. No Brasil colônia, outro tombo fenomenal: virou "chumbrega", coisa ruim, ordinária, reles. Já a palavra marechal subiu de elevador. De artesão encarregado das ferraduras dos cavalos em 1086, a palavra marechal foi alçada ao mais alto posto na hierarquia do Exército brasileiro mais de 800 anos depois. Outra palavra rebaixada pelo Houaiss é uma daquelas que podem aparecer tanto numa questão do vestibular quanto no Show do Milhão. Qual é a maior palavra da língua portuguesa? Quem respondeu "anticonstitucionalissimamente" errou. Ela perde para outra ainda mais extensa.Quem ostenta o título agora é "pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiótico". São 46 letras. Seu significado? Bem, ela descreve o estado de quem é acometido de uma doença rara provocada pela aspiração de cinzas vulcânicas. Com curiosidades, segredos garimpados em centenas de obras consagradas e uma pesquisa histórica profunda que datou a entrada de quase todas as palavras no idioma, o novo dicionário vai brigar pela posição de a maior autoridade da língua pátria, a sétima do mundo, com 200 milhões de falantes, à frente do japonês, francês e alemão. "Nosso objetivo é que as pessoas saquem do Houaiss numa discussão para resolver sem contestação uma dúvida de linguagem", diz Feith.
Não é pouca ambição. Obra plácida, neutra em sua aparência de celeiro do idioma, com a matéria-prima disposta em ordem alfabética, os dicionários, no fundo, escondem rivalidades terríveis. Os mais mansos chegam ao mundo com o objetivo apenas de descrever como o idioma está sendo usado pelas pessoas em determinados períodos da História. Outros, como o Aurélio e o Houaiss, querem ser autoridade. São dicionários brigões, normativos, querem dar receita do bom uso da língua. Seus autores esperam que as pessoas recorram a eles em caso de dúvidas cruéis de linguagem. Dar a palavra final, ser a obra de maior credibilidade, é o grande prêmio. Poucos chegam lá. Já é um grande passo para um dicionário quando o nome do autor se confunde com a própria obra. O primeiro dicionário da história ocidental a obter tal honraria foi uma lista de poucos milhares de palavras latinas compiladas pelo intelectual italiano Ambrogio Calepino em 1502. Seu Dictionarum interpretamenta fez enorme sucesso numa Europa sedenta de conhecimento que mal se erguia das sombras da Idade Média. Historiadores encontram freqüentes referências à obra. Uma delas é a prova de que o dicionário fazia parte do cotidiano da elite letrada - menos de 1% da população européia de então. Um nobre inglês morto em Lancashire em 1568 registrou em seu testamento que deixava como herança, entre outros objetos de valor, seu "calepino". Mais tarde, outros dicionários atingiram essa singularidade. O Covarrubias, na Espanha, e o Caldas Aulete, em Portugal. O Johnson e o Webster nos países de língua inglesa. O Aurélio no Brasil.
Quando se examina a complexidade desse tipo de empreitada fica claro que, para a equipe envolvida, prêmio mesmo é pôr um ponto final à obra. Ao cabo dos trabalhos, o dicionarista-chefe do projeto Houaiss, Mauro Villar, estava à beira de um ataque de nervos. Típico da atividade. É famoso entre as pessoas do ramo o registro que ficou da triste vida do inglês Thomas Cooper, que se meteu em 1565 a fazer um Thesaurus Linguae Romanae et Britannicae ("Tesauro da língua romana e britânica"). "Ele estava com metade do trabalho pronto quando a paciência de sua mulher se esgotou. Ela jogou todos os papéis na fogueira. Mas era tão grande o zelo de Cooper que ele começou tudo de novo, do zero", escreveu um século mais tarde o historiador John Aubrey. Em 1789, a Academia de Ciências de Lisboa arregimentou forças para criar um dicionário completo da língua portuguesa. Com todo o empenho, não conseguiu passar da letra A. Apesar do fracasso, o volume remanescente é considerado pelos filólogos uma peça preciosa. Dois séculos se passaram e só no ano passado a academia finalmente editou seu dicionário. Na Alemanha, os irmãos Grimm começaram a compilar um léxico no século XIX. Ele só foi dado por concluído 126 anos depois, em 1960. Por essa razão, os Grimm tornaram-se famosos planetariamente como autores de contos infantis e não como filólogos. Editar o dicionário Houaiss em uma década foi um feito.
"O primeiro passo para lançar um dicionário é a motivação. Por que fazer um quando já existem tantos? A segunda coisa é delimitar o número de verbetes. A terceira é estabelecer um prazo para terminar", conta Mauro Villar. A motivação foi dada por Antônio Houaiss em pessoa. Ele queria associar seu nome ao mais completo dicionário. Houaiss lembrava sempre que o próprio Aurélio se define como uma obra inframédia, ou seja, que não chega a contemplar nem a metade das palavras do idioma. Houaiss julgava a obra de Aurélio meritória, mas entendia que sua formação de professor de português, excelente por sinal, era fraca em instrumentos teóricos para levá-lo às profundezas do idioma. Outras obras, Houaiss as via defasadas e incapazes de satisfazer quem quisesse ultrapassar os desafios do uso correto do português atual. Não fossem essas razões, havia a mais alta: a ambição de escrever um dicionário que representasse sua própria visão da língua portuguesa. A erudição, somada ao conhecimento e à tenacidade de alguém que levou apenas nove meses para traduzir a obra inaugural da modernidade, o Ulysses, do irlandês James Joyce - enquanto sua mãe morria de câncer -, fez de Houaiss o homem talhado para a tarefa monumental.
Houaiss queria uma obra que reunisse com igual ímpeto os vocábulos utilizados pelos grandes escritores e aqueles gerados pelo linguajar mais comum das pessoas no dia-a-dia. Ele almejava profundidade histórica e modernidade. "Algo que ombreie com o desenvolvimento alcançado em outras línguas românicas, a exemplo do francês, do espanhol, do italiano, do catalão", como escreveu no prefácio do novo dicionário. A definição do tamanho do dicionário só se deu depois que os envolvidos na produção dicidiram que a obra deveria ficar pronta até o ano 2000. Dados o tempo disponível e a complexidade da tarefa, os especialistas reunidos pelo Instituto Antônio Houaiss, organização criada pelo filólogo para o estudo do idioma, estabeleceram que o dicionário teria 228.500 verbetes. Sem disciplina férrea, não passariam da letra A. "Com todo o esforço de organização, a sensação que tínhamos era a de um piloto tentando levantar vôo com um avião ainda em construção", define Mauro Villar.
As primeiras fases do projeto, antes da entrada da editora Objetiva, foram bancadas pelo Instituto Antônio Houaiss com receitas obtidas de fontes privadas e estatais. Conseguiu-se o suficiente para pagar a dezenas de pesquisadores. Os melhores chegavam a ganhar 5.000 reais por mês. Colaboradores técnicos recebiam 2 reais por verbete. Quando o dinheiro acabou, a seis meses do término da obra, todos trabalharam de graça. Toda essa gente produzia o que exatamente? Pequenos textos com os significados das palavras, sinônimos e antônimos, mas igualmente a história ou a etimologia dos vocábulos. A mecânica do trabalho tinha um componente braçal. Foi nessa fase que o computador ajudou muito. Os pesquisadores faziam cópias digitais, com a ajuda de um escâner, de artigos de revistas, jornais, livros e outras fontes. Tudo isso ia para um arquivo digital comum, de forma que as modificações podiam ser instantaneamente compartilhadas. "Sem isso não teríamos conseguido acelerar os trabalhos", lembra Feith. Todos seguiram as orientações de Houaiss, consolidadas em um manual de redação com 100 páginas, que se tornou ainda mais valioso depois de sua morte. Os verbetes também só recebiam o ponto final depois de confrontados com os de outros dicionários. "Começamos pela letra B, mais simples, para 'esquentar' os motores e testar a eficiência de nossa rotina. Depois passamos ao D e, finalmente, enfrentamos o A, a letra mais extensa e complexa", explica Mauro Villar.
Se consideramos como primeiro dicionário da história uma pequena lasca de pedra com uma dúzia de vocábulos de um idioma obscuro encontrada na antiga Mesopotâmia, então essa compulsão humana de listar palavras tem pelo menos 2.700 anos, ou 27 séculos. De lá para cá, a evolução foi tremenda. Até o século XIV, por exemplo, as palavras eram organizadas não em ordem alfabética, mas em grupos de significados parecidos. Esse tipo de dicionário sobreviveu aos nossos dias. São os tesauros, dicionários de sinônimos ou de idéias correlatas. Ninguém, porém, traçou tão bem quanto Noah Webster (1758-1843), famoso lexicógrafo americano, quais devem ser os critérios fundamentais para separar as palavras dicionarizáveis das que não merecem essa glória. Aconselhou o sábio que se leve em conta o seguinte:
 a mudança é normal;
 a linguagem falada é a linguagem;
 o que define a correção é o uso;
 todo uso é relativo.
Como toda regra simples, a de Noah Webster é brilhante, mas não esgota a questão: por ter mais verbetes que o Aurélio, o Houaiss é um dicionário, sem dúvida, mais completo. Mas é o melhor? Muito antes de fazerem seus dicionários, Aurélio Buarque de Holanda e Antônio Houaiss já divergiam sobre o número ideal de palavras que uma obra do gênero deve ter. Aurélio sempre foi favorável a uma lista menor concentrada em palavras efetivamente usadas no dia-a-dia. Houaiss pendia para dicionários mais completos, históricos, enciclopédicos. Essa, aliás, é a mais resistente das brigas entre a maioria dos dicionaristas de qualquer idioma. O estudioso americano David Foster Wallace sugere desafiadoramente que, se tamanho e modernidade são documentos, o dicionário de inglês ideal abrigaria tantos termos que pesaria 2 toneladas e teria de ser atualizado a cada meia hora. "Claro que um dicionário assim não tem valor. Por isso é preciso alguém com autoridade para escolher as palavras", diz Wallace. "Aí é que está a beleza autoral, pois toda escolha será inevitavelmente ideológica."
A precaução básica de Houaiss, segundo Mauro Villar, foi evitar a transformação da linguagem de forma muito veloz, o que, para ele, seria catastrófico. Também temia que o ritmo fosse lento demais e seu dicionário registrasse uma língua moribunda e não aquela que pulsa nas ruas, lojas, estádios, estações de metrô e bares. Quando se mede o ritmo que efetivamente empreendeu ao dicionário, nota-se que Houaiss foi muito rápido no gatilho. Para começo de conversa, não teve nenhum tipo de preconceito com os vocábulos de origem estrangeira. Estão lá, devidamente dicionarizadas, as palavras popularizadas pela internet, como site, www, web e hipertexto. O americano Wallace conta que antes da internet só Sigmund Freud, o pai da psicanálise, provocara, no começo do século XX, uma reação tão grande por causa da avalanche de palavras estrangeiras, no caso alemãs, que espalhou pelos idiomas de todo o mundo. Com as reações costumeiras. "Houve uma enorme resistência dos puristas da língua inglesa quando Freud criou ou redefiniu termos como libido, narcisismo ou ansiedade", lembra Wallace. É a mesma situação que se vive em certos círculos intelectuais do Brasil de hoje, cujo paroxismo é o projeto de lei do deputado comunista Aldo Rebelo que prevê multas para quem usar palavras de origem estrangeira.
A própria expansão da língua portuguesa é um exemplo a desmentir a tese do deputado. Os estrangeirismos foram uma fonte inestimável de riqueza do idioma pátrio. Na Idade Média, o português era falado com o uso de apenas 15.000 palavras. Em meados do século XVI, com as grandes expedições marítimas, esse número saltou para 30.000. No fim do século XIX, os dicionários registravam cerca de 90.000 vocábulos. Na década de 80, um levantamento da Academia Brasileira de Letras dava conta da existência de 360.000 palavras. Os "empréstimos" de palavras estrangeiras, longe de empobrecer, tornam a língua hospedeira mais abrangente e culta. "Não poderia ser de outra maneira. Tudo o que vem de fora para simplificar permanece. Não adianta espernear. Quem dirá 'controle de embarque de passageiros' em vez de 'check-in'?", desafia o professor Leodegário de Azevedo Filho, presidente da Academia Brasileira de Filologia e autoridade mundial em Camões. O avanço do inglês sobre os idiomas é visto como fato natural entre filólogos e dicionaristas, devido à liderança tecnológica dos Estados Unidos. A tecnologia de ponta trouxe manuais, apostilas, cursos e termos que consagram o inglês a ponto de hoje ele ser falado por 1 bilhão de pessoas, na maioria bilíngües. Antes do inglês, o francês teve status de língua franca do mundo - e atraía sobre si a mesma fúria nacionalista dos defensores dos idiomas pátrios.
Como mero depositário dos termos de uso corrente, todo dicionário é uma obra hiperdimensionada. Um estrangeiro que fale bem o português básico terá dominado 1000 vocábulos do idioma. Fora os termos técnicos, as principais línguas escritas usadas atualmente no mundo esgotam-se em 60.000 palavras. No Brasil, os filólogos estimam que o vocabulário básico reúna cerca de 3.000 termos. As populações em geral conseguem se comunicar com 800 a 1.400 palavras. Pessoas cultas valem-se de 3.000 a 5.000 vocábulos. Sabe-se que a obra do romancista Camilo Castelo Branco foi construída com nada menos que 15.000 vocábulos. Maior escritor brasileiro, Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Braz Cubas, lançou mão de 6.700 diferentes palavras. William Shakespeare, cuja obra foi escrita no século XVII, serviu-se de 25.000 vocábulos, dos quais criou pelo menos um quinto. Diante do estoque de palavras usadas pelos gênios acima, fica difícil imaginar quem precise das centenas de milhares de vocábulos contidas em um dicionário para se fazer entender. "A comunicação verbal ou mesmo escrita é complexa. Menos pode ser mais. Às vezes, quem sabe muito pode enrolar-se num vocabulário empolado e não conseguir transmitir o que deseja", diz Reinaldo Polito, professor de expressão verbal, que, entre seus alunos, tem políticos, atores e apresentadores de televisão. Conhecer um número maior de palavras, porém, é sempre uma vantagem. Mesmo que seja apenas uma vantagem potencial. Uma pesquisa da Harvard Business School mostrou que, para galgar um nível hierárquico nas empresas americanas, o funcionário é obrigado a enriquecer seu vocabulário em pelo menos 10%.
A editora Objetiva distribuiu algumas cópias do Houaiss a uma dezena de filólogos e estudiosos do português. Cada um teve de assinar um termo de confidencialidade para não atrapalhar a surpresa que a editora espera criar com o lançamento. O dicionário Houaiss foi bem recebido. "É uma obra aberta, sem preconceitos, que incorpora arcaísmos, indianismos, africanismos, regionalismos brasileiros e até asiaticismos. Isso a torna tecnicamente impecável", define o professor Leodegário. Ele não enxerga, porém, vantagens em tentar ser o mais completo dicionário. É um objetivo inalcançável. "Basta o leitor não encontrar uma palavra no dicionário para amaldiçoá-lo", lembra Leodegário, citando outro filólogo, Oswaldo Serpa: "O destino do dicionarista é conviver com a ingratidão humana".
"Vocês não estão fazendo só um dicionário, estão fazendo poesia", sentenciou o escritor português José Saramago, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, que acompanhou parte dos trabalhos da equipe do Houaiss. Saramago se encantou com a definição do verbete "saudade" apresentada a ele por Mauro Villar: "Sentimento mais ou menos melancólico de incompletude", como reza a primeira das trinta linhas dedicadas ao vocábulo do qual os usuários da língua portuguesa mais se orgulham por o julgarem intraduzível para outros idiomas. Outro ponto relevante do Houaiss é o fato de muitas vezes abandonar o campo do dicionário de língua e ir além, ingressando no enciclopedismo. "No verbete 'filipeta', por exemplo, Houaiss não se contenta em defini-lo como 'promissória fraudulenta'. Vai além, conta o crime e indica o criminoso, Felipe, um capitão da reserva do Exército que nos anos 50 aplicou um golpe no mercado financeiro", lembra o professor Evanildo Bechara, da Academia Brasileira de Letras. Uma das razões pelas quais o acadêmico considera a obra uma "revolução literária" é o fato de ter abandonado o recurso, usado em outros similares, de definir um verbete pela utilização sucessiva de sinônimos. "Houaiss ensina o significado", diz o acadêmico. "Se pecado há no novo dicionário, é o de dar mais do que se pede." O julgamento final do que foi conseguido, como Antônio Houaiss deixou escrito no prefácio da obra, caberá, como sempre, ao leitor.
 
 
OXFORD, O MAIOR DOS DICIONÁRIOS TEVE AJUDA ATÉ DE LOUCOS
Véspera de Ano-Novo, 1927. Ao sair do linotipo o derradeiro verbete da obra, os comedidos funcionários da gráfica da Universidade de Oxford se permitiram um "hurra!". Terminava a saga que já durava quase meio século, mais exatamente, 48 anos, da preparação do Oxford English Dictionary, a obra mais complexa e completa do gênero. Conhecido pela sigla OED, ele resultou de um clamor da sociedade culta da Inglaterra por codificar, listar, decifrar todas as palavras de seu idioma. A primeira edição da obra reuniu 414 825 verbetes. Eles exigiram 1,8 milhão de citações ilustrativas para tornar seu significado mais preciso. Tudo isso "condensado" em doze volumes. Se é que se pode chamar uma dúzia de livros de condensação. Colocados lado a lado, os tipos gráficos se estenderiam por 285 quilômetros. Apenas a letra T consumiu cinco anos de trabalho. Manter a papelada no lugar por décadas deu tanto trabalho quanto a empreitada intelectual. Às vésperas de mandar os originais para a impressão, parte da letra C havia sido roída por ratos. As folhas de papel contendo as palavras com a letra I foram parar misteriosamente num convento abandonado. A seção inteira com a letra F foi enviada por engano para Florença.
O dicionário mobilizou mais de 1 milhão de voluntários anônimos. Dois deles, Fitzedward Hall e William Chester Minor, entraram para a história. Eram loucos brilhantes. Hall abandonou a cátedra de sânscrito no prestigiado King's College e tornou-se um ermitão. Minor fora recolhido a um manicômio judiciário pelo assassinato de um operário quando, segundo seus advogados, se encontrava "fora de suas faculdades mentais". Ambos colaboraram durante vinte anos com a obra. Minor era exato como um atirador de elite. Ele tinha a última palavra sobre as dúvidas mais resistentes. Suas respostas chegavam por carta numa caligrafia impecável. Quando suas contribuições certas passaram de 12 000, os responsáveis pelo dicionário decidiram conhecê-lo pessoalmente. Só então descobriram que ele cumpria pena por assassinato. Até hoje a gigantesca aventura do Oxford nunca foi superada.
Como todo grande dicionário, o Oxford deve sua vida ao empenho inicial de uma única pessoa, no caso um abnegado professor chamado James Murray, nascido em 1837, em um vilarejo na fronteira com a Escócia, filho de um alfaiate. Por falta de dinheiro, aos 14 anos foi obrigado a deixar a escola. Tornou-se autodidata. Quando procurou emprego no Museu Britânico, apresentou como credenciais o fato de dominar 22 idiomas e dialetos: do sânscrito ao hebraico, do alemão ao dinamarquês, do grego ao português. Foi recusado.
Eleito para a Sociedade de Filologia, aceitou o desafio de compilar o grande dicionário da língua inglesa. Sua tarefa mais impressionante foi reativar o exército de voluntários que já haviam colaborado em inúmeras tentativas fracassadas anteriormente.
 
A ETERNA LUTA EM BUSCA DA PERFEIÇÃO
Morto em 1999, de câncer, aos 83 anos, Antônio Houaiss foi um homem de frustrações imerecidas: como diplomata, não chefiou embaixada, como etimologista, não viu pronta sua obra magnífica. Convidado por Itamar Franco em 1993 para chefiar a missão diplomática junto à Unesco, não aceitou porque a saúde começara a fraquejar. Eleito para a Academia Brasileira de Letras, com 36 votos do quorum de 38, fazia questão de declarar: "Não sou grande escritor. Não sou ficcionista nem poeta. Sou apenas um estudiosozinho da língua portuguesa. Um conhecedor da matéria, digamos". Diplomata, gastrônomo, etimologista, ministro da Cultura, presidente da Academia Brasileira de Letras, enciclopedista e dicionarista. Houaiss era um sedutor. Suas armas: a imensa cultura, charme, inteligência, brilho e infindável curiosidade pelo mundo. "Esses predicados deixavam mulheres e homens seduzidos", testemunha Francisco de Mello Franco, um de seus maiores amigos e íntimo colaborador. Nas mãos muito finas, um adereço freqüente, um copo alto de uísque Ballantine's.
Trabalhava como um bulldozer, atestam todos os que operaram sob seu comando. No Itamaraty, ingressou no fechadíssimo concurso em 3º lugar, empatado com o poeta João Cabral de Melo Neto. Seu primeiro desafio foi classificar e organizar, em menos de um ano, 14.000 instruções enviadas para embaixadas e consulados - trabalho que havia derrubado várias comissões. Nasceu no Rio de Janeiro em 1915, filho de imigrantes libaneses, família numerosa. Enquanto estudava latim e os clássicos gregos por conta própria, o intelectual precoce aprofundava-se na culinária. Mais tarde escreveria dois livros de receitas, esgotados rapidamente. Militante esquerdista, foi expulso do Itamaraty, para onde voltaria por decisão do Supremo Tribunal Federal. Em 1964 foi novamente cassado pelos militares.
 
A AVENTURA DAS PALAVRAS PELA HISTÓRIA
O Houaiss sugere a data mais provável de quando determinada palavra foi usada pela primeira vez na linguagem escrita. Muitas vezes há certeza. Em outras, faz-se especulação pura. As maiores fontes de palavras novas dicionarizáveis são os idiomas estrangeiros, as grandes descobertas ou teorias científicas revolucionárias, as guerras e o vocabulário popular. Abaixo, uma lista de palavras tiradas do Houaiss e de outros dicionários.
PALAVRAS ANTIGAS QUE SOBREVIVERAM
Anfitrião - Aquele que oferece e paga as despesas de um jantar, festa, banquete. Deve-se sua entrada nas línguas neolatinas ao escritor francês Molière, que em 1608 se apoderou do nome do rei tebano Amphitryon e o transformou num substantivo.
Banho-maria - Aquecer ou cozinhar uma substância numa vasilha colocada dentro de outra com água quente. Especulação histórica das boas. O Houaiss registra a existência de uma certa "Maria, a Judia", alquimista que aprimorou esse processo. Levanta-se também a possibilidade de se tratar de uma integração simbólica da Virgem Maria à mística do esoterismo alquímico, relacionado com o mito egípcio da deusa Ísis.
Baderna - Sinônimo de bagunça. Originou-se da exaltada e barulhenta tietagem dos admiradores da dançarina italiana Marieta Baderna, que viajou ao Rio de Janeiro, em 1851.
Camelô - Do francês camelot (1821), "vendedor ambulante de coisas de pouco valor". Segundo o Houaiss, no Brasil, a famosa revista humorística Careta já a utilizava com esse mesmo sentido em 1917.
Despautério - Grande tolice, despropósito, disparate. Vem de Despautère, nome afrancesado do gramático flamengo J. van Pauteren, autor de uma gramática confusa e desorientada muito difundida na Europa entre os séculos XVI e XVII.
Ladrão - Palavra mais antiga que o reino de Portugal, tem seu registro mais antigo no ano 1059. Originou-se provavelmente da designação dada aos soldados mercenários gregos desde os primórdios da era cristã. Eles eram chamados em latim de latro, ónis.
Larápio - Ladrão, gatuno. Os estudiosos dão como quase certo que se originou na Roma antiga, onde um pretor de nome Lucius Antonius Rufus Appius se assinava L. A. R. Appius e passava sentenças favoráveis a quem pagasse mais por elas. Assim, larápio tornou-se designativo de qualquer pessoa que aja de modo desonesto.
Mecenas - Financiador das artes. Vem diretamente de Caio Cilino Mecenas (60 a.C. - 8 d.C.), estadista romano que protegia artistas.
Pindaíba - Com o significado de estar na miséria, teve seu uso pioneiro detectado pelo Houaiss em 1899. Pode ter vindo das palavras da língua africana quimbundo mbinda, "miséria", mais uaíba, "feia", resultando em mbindaíba, e daí em pindaíba.
Silhueta - Sua origem remonta a um ministro das Finanças da França no século XVIII chamado Étienne de Silhouette, que tinha como hobby recortar em papel o perfil de amigos e colegas. Como ministro, anunciou grandes reformas mas quase sempre fracassou. Para ridicularizá-lo, o povo passou a chamar "à la silhouette" tudo o que tinha um aspecto inacabado, incompleto.
 
PALAVRAS QUE O SÉCULO XX CRIOU
Áudio - Do latim audire (ouvir), apareceu em 1913 no sentido mais usado hoje em dia: um som gravado ou transmitido. Vídeo foi cunhada em 1935, do latim videre (ver), quando foi necessário nomear a imagem produzida pelo primeiro televisor.
Bauru - Data de 1934. Sanduíche feito de pão francês, rosbife, queijo, ovo frito, tomate e alface criado pelo radialista Casemiro Pinto Neto, o "Bauru", nome também da cidade onde ele nasceu.
Biquíni - Outra contribuição francesa. Le Monde Illustré comparou o impacto do maiô de duas peças à explosão da primeira bomba de hidrogênio pelos americanos no atol de Bikini, no Pacífico.
Bicho-grilo - O Houaiss registra sua entrada no idioma em 1970: "indivíduo que segue a contracultura" e dá como origem uma explicação antológica: "por referência ao hábito de essas pessoas serem geralmente adeptas da alimentação natural, à base de verduras, legumes."
Bulimia - Para definir a desordem emocional que ataca principalmente jovens do sexo feminino preocupadas com sua forma e peso, só aparece, no inglês, em 1976. O Houaiss diz que existe em português desde 1881.
Depressão - Em uso desde meados do século XVIII, era sinônimo apenas de tristeza. Foi utilizada pela primeira vez para definir uma doença psicológica em 1905, num artigo da revista inglesa Psychological Review.
Gay - No sentido de homossexual, data de 1933 nos Estados Unidos. Especula-se que sua origem mais provável é uma música muito popular no país em 1868 chamada The Gay Young Clerck in the Dry Goods Store ("O alegre atendente da mercearia"). A música era cantada por um artista que imitava uma mulher.
Herpes - O vírus que inferniza as pessoas até hoje recebeu esse nome em 1925. Provavelmente se originou do latim "animal desconhecido".
Imagem - Com o significado da impressão que determinada pessoa, em geral alguém famoso, deixa nas demais, foi registrada pela primeira vez em 1908. Atribui-se ao escritor inglês G.K. Chesterton sua utilização na acepção acima.
Libido - A palavra que define a energia psíquica associada ao instinto sexual foi uma das muitas introduzidas por Sigmund Freud nos idiomas do mundo inteiro. O Houaiss informa que Freud buscou suas raízes no termo latino que significava "desejo violento". Seu uso em português foi registrado em 1928, dezenove anos depois de estrear em inglês.
Linha da pobreza - Nível mínimo de renda capaz de pagar uma existência decente para uma família. Mal o economista B.S. Rowntree a criara, em 1901, o então jovem político Winston Churchill já se utilizaria dela num discurso no mesmo ano. Churchill cunhou também, em 1908, o termo "seguro social."
Modelo - Em 1904 aparece em inglês para designar as mulheres que vestiam roupas em lojas para apresentá-las aos clientes. Desbancou, então, a palavra manequim. O Houaiss registra a entrada no português de supermodelo e top model sem datá-las.
Narcisismo - O alemão Näcke a cunhou em 1899. Em 1905, as pessoas entusiasmadas pela psicanálise já a utilizavam para descrever tecnicamente o fenômeno da autocontemplação. Popularizou-se ao longo do século XX até se confundir com vaidoso.
Pracinha - Soldado da Força Expedicionária Brasileira que lutou na Itália na II Guerra Mundial. Vem de praça, nome que se dava aos militares de baixa patente.
Paraíso fiscal - O Oxford toma como fonte original de seu uso na língua inglesa uma reportagem do jornal londrino The Times, de 1973. Houaiss registra a acepção moderna ("pequenos Estados onde pessoas e empresas fazem depósitos aproveitando-se dos baixos impostos ou mesmo de sua isenção"), mas não precisa a data.
Pop - O Houaiss a encontrou pela primeira vez na língua portuguesa em 1957. Define-a como "cultura popular em geral do eixo anglo-americano disseminada pelos meios de comunicação de massa." Em inglês, informa o dicionário Oxford, é usada desde 1926, denotando qualquer produção cultural com amplo apelo popular, em especial entre os jovens.
Sexy - "Sexualmente atraente". Foi encontrada pelo dicionário Oxford em um texto em francês de La Nouvelle Revue Française em 1925.
Socialite - Dá-se como certo ter sido criação dos redatores da revista semanal americana Time numa reportagem de 1928 sobre uma festa que reuniu nobres e aristocratas.
Tablóide - "Jornal sensacionalista". Não há registro de seu uso antes de 1918. Mas a expressão "jornalismo tablóide", sem a conotação sensacionalista, deriva de uma marca registrada em 1884 por um fabricante de cápsulas medicinais. A idéia era a de que se podiam publicar apenas "notícias concentradas".
AS NOVISSÍMAS DO DICIONÁRIO
Drag Queen - "Homem que se veste com roupas de mulher e imita voz e trejeitos tipicamente femininos."
Ficar - Está lá na 34° definição: "manter com alguém convívio de algumas horas sem compromisso de estabilidade ou fidelidade amorosa."
Imexível - "Em que não se pode mexer, inalterável." O Houaiss informa que o termo foi criado em 1990. Não diz, porém, que seu autor foi Antônio Rogério Magri, ministro do Trabalho do governo Collor. O filólogo Antônio Houaiss foi, em vida, ardente defensor da correção do termo que fez de Magri motivo de risadas.
Laptop - "Computador portátil provido de monitor de vídeo."
Larica - "Sensação de fome provocada pelo consumo de maconha."
Site - "Local na Internet identificado por um nome de domínio, constituído por uma ou mais páginas de hipertexto, que podem conter textos, gráficos e informações em multimídia."
Top model - "Manequim ou modelo de renome."
FERRAZ, Sílvio. O Poder da Palavra. Revista Veja, 29 ago 2001, p. 114-122

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