segunda-feira, 8 de abril de 2013

JORNALISMO E LITERATURAINTERSECÇÕES

 
Jornalismo e literatura
 
CARLOS HEITOR CONY
É necessário apelar para Aristóteles: a definição se faz pelo gênero próximo e pela diferença última. Exemplo: o homem é um animal racional. O gênero próximo é o animal; a diferença última é o racional. Aplicando a mesma definição ao jornalismo e à literatura, teríamos de encontrar a diferença última entre as duas expressões da comunicação humana.
O gênero próximo é o mesmo: o universo das letras. A diferença última é o tempo. Daí que a palavra crônica é segmento comum da literatura e do jornalismo. O jornalismo condiciona o espaço da letra ao tempo do tempo. O jornalismo distingue-se da literatura por ser uma expressão datada.
Não se trata de considerar o jornalismo como expressão inferior à literatura. São expressões diferentes, unidas pelo mesmo gênero. Utilizam o mesmo veículo, pretendem atingir o mesmo objetivo, mas em tempo próprio para cada um. Dois exemplos da diversidade de tempo que marca tanto o jornalismo como a literatura: o primeiro seria o de Castro Alves, essencialmente um poeta, e José do Patrocínio, essencialmente um jornalista. Ambos integram a cultura brasileira, ligados sobretudo à causa da abolição da escravatura. Patrocínio era o tigre, enchia a rua do Ouvidor, foi levado em triunfo, no ombro do povo, logo após a princesa Isabel ter assinado a Lei Áurea. O herói foi ele, não a princesa.
Castro Alves nunca teve triunfo igual, mas continua presente em nosso presente e estará presente em nosso futuro. "O Navio Negreiro" atravessa gerações, é declamado nas escolas, nos teatros, na TV, emplacou na história. Patrocínio jornalista não foi menor, foi até maior do que Castro Alves no factual, no tempo, na data. Mas no tempo? Na permanência? O gênero próximo que unia os dois eram as palavras que despertavam emoções e apelos à razão, mas a diferença última foi o tempo -um escreveu para o dia; o outro, para sempre.
O outro exemplo vem de fora, foi provocado pelo caso Dreyfus. Na França, havia a consciência de que um inocente apodrecia numa caverna da ilha do Diabo. O verdadeiro culpado já confessara o crime de espionagem, mas estava a salvo na Inglaterra. O poder da época não permitia a revisão do processo, o Exército francês ficaria desmoralizado e era necessário prestigiá-lo, pois havia sempre o perigo de uma guerra contra a Alemanha.
Foi nesse quadro de infâmia que um escritor se levantou em defesa da dignidade, a própria e a da nação. Emile Zola era desprezado por sua obra naturalista, acusado de imoral. Sangue italiano, arrebatado, Zola escreveu um artigo, teve dificuldade em publicá-lo. Após tentativas frustradas, procurou o "L'Aurore", dirigido então por George Clemenceau, que mais tarde seria primeiro-ministro da França. Clemenceau aceitou o artigo de Zola, mas chamou-o à Redação e comunicou-lhe que mudaria o título de seu texto. Zola quis saber o que havia de errado naquela "Carta a M.Felix Faure, Presidente da República".
Clemenceau explicou:
- Ninguém lerá um texto comprido como o seu e com esse título. Você mesmo faz uma série de acusações; no trecho final, todos os seus parágrafos começam com um "Eu acuso". O título está aí. Eu acuso! "J'accuse!".
Entraram os três para a história, Zola, Clemenceau e o artigo.
Analisemos o episódio. O escritor já era famoso, bem mais do que Clemenceau, que, na época, era apenas um jornalista voltado para a política. As obras de Zola corriam o mundo, ele fizera discípulos em todas as literaturas (Eça de Queiroz foi um deles), tornara-se o papa de uma nova corrente literária, mas não sabia provocar impacto. Foi, como disse Victor Hugo no seu funeral, "um momento da consciência humana", mas lhe faltava o "timing" que se adquire nas redações comprometidas com o que está acontecendo.
Zola não escrevia para o dia seguinte, escrevia para sempre. Tanto que seus romances continuam editados, traduzidos, adaptados para o teatro, para o cinema, para a TV.
Costumo fazer uma comparação entre jornalismo e literatura. O jornalista é um peixe de aquário, exibe seu desenho, suas cores, a fosforescência que atrai o leitor. Impossível não admirar um peixe na gaiola iluminada, com água renovada diariamente. É um clown. Precisa de brilho, expressa-se num palco.
O escritor é diferente. Ele terá apenas cem leitores, como Stendhal calculava para si mesmo. Ou, como Shakespeare, passará 200 anos no limbo. O jornalista não pode passar duas edições sem ser lido.
E, se o jornalista é o peixinho de aquário, o escritor é o peixe da água profunda, vive na treva, em águas aonde nem chega a luz do sol. É monstruoso, escuro, quasímodo que habita um território impenetrável. Não conhece os limites do palco. Tem o oceano para arrastar seu corpo medonho, sua fome que não escolhe o que comer. (PS: este é o resumo de uma palestra em seminário sobre jornalismo e literatura.)
FONTE:https://www.blogger.com/blogger.g?blogID=1399839174109335282#editor/target=post;postID=5889891217785283833

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